'Intervenção não pode se resumir a envioblaze cadastre secapitão do mato à senzala do século 21', diz ex-chefe da Polícia Civil:blaze cadastre se

  • Júlia Dias Carneiro
  • Da BBC Brasil no Rioblaze cadastre seJaneiro
Militarblaze cadastre seforça especial na Vila Kennedy, no Rio

Crédito, AFP

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Ex-delegado vêblaze cadastre seintervenção possibilidadeblaze cadastre seatacar o problema da corrupção policial

blaze cadastre se Os diagnósticos incisivosblaze cadastre seHélio Luz, ex-chefe da Polícia Civil no Rio, ficaram marcados na memóriablaze cadastre sequem, há quase 20 anos, o assistiu no documentário "Notíciasblaze cadastre seUma Guerra Particular", descrevendo uma polícia que foi "criada para ser violenta e corrupta" e teria papelblaze cadastre se"garantir uma sociedade injusta".

"Como você mantém os excluídos todos sob controle, ganhando R$ 112 por mês? Com repressão", disse aos diretores João Moreira Salles e Kátia Lund, na épocablaze cadastre seque chefiava a Polícia Civil fluminense, entre 1995 e 1997, referindo-se ao valor do salário mínimoblaze cadastre seentão.

Aos 72 anos, Luz está aposentado, afastado da vida pública e vive com a famíliablaze cadastre sePorto Alegre, onde nasceu. Mas continua acompanhandoblaze cadastre seperto as notícias da guerra particular que não acaba no Rio.

Em entrevista à BBC Brasil, ele faz o esforço constanteblaze cadastre sedeslocar o foco das favelas, que têm sido objetoblaze cadastre seoperações policiais e militares, e apontar o espelhoblaze cadastre sevolta para as elites, para a classe média e para as forçasblaze cadastre sesegurança.

"Por que cercar a favela, se o crime não está ali? O cerne da questão da insegurança não está ali. Aquilo ali é o resultado", afirma, considerando que os "meninos que estão no tráfico" são produto da desigualdade social.

Luz considera que a intervenção federal pode trazer benefícios se deixarblaze cadastre selado ações ostensivas nas favelas - que equivalem a "enxugar gelo" e estigmatizam os moradores - e trabalhar para recuperar as estruturas policiais, neutralizando a açãoblaze cadastre seagentes corruptos e fazendo com que os "mocinhos" - integrantes do sistemablaze cadastre sesegurança - façam jus à designação popular.

"O problema do Rio não são os bandidos. O problema do Rio são os mocinhos. Se ele recuperar o quadroblaze cadastre semocinhos, ele pode dar uma atenção real ao quadroblaze cadastre sebandidos", afirma.

Hélio Luz, ex-che da Polícia Civil
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'Como você mantém os excluídos todos sob controle, ganhando R$ 112 por mês? Com repressão', disse Luzblaze cadastre sedocumentário há quase duas décadas | Imagem: Walter Carvalho

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Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

blaze cadastre se BBC Brasil - Como o senhor se posicionablaze cadastre serelação à intervenção federal?

blaze cadastre se Hélio Luz - Eu entendo que a intervenção é constitucional. É inédita, mas é constitucional. A discussão está sendo muito reduzida ao oportunismo políticoblaze cadastre sequem detém o poder. Foi uma medida oportunista? Foi, e nisso está longeblaze cadastre seser a primeira.

Mas acho que temos que ter uma discussão mais consequente. Estamos falando do problemablaze cadastre sesegurança da população do Rio. Há uma questão real e podemos ter uma conversa séria sobre isso.

Não vou falar no interventor, que é um cargo político, e sim no general Braga Netto, que manda no Comando Militar do Leste. O CML é o mais antigo e o mais completo arquivoblaze cadastre seinformações sobre os integrantes das polícias Civil, Militar e dos bombeiros do Estado do Rio. A trocablaze cadastre seinformação do Exército com as polícias é constante. A segunda seção das Forças Armadas sabeblaze cadastre setudo.

Outros comandantes do CML tiveram acesso a essas informações, mas não podiam fazer muita coisa. Agora o general tem acesso a essa inteligência e pode agir com base nela. Pode mudar o comando e mexer nas polícias. Isso é inédito.

blaze cadastre se BBC Brasil - Mas a intervenção tem data para acabar, dia 31blaze cadastre sedezembro. É possível resolver problemas estruturais na áreablaze cadastre sesegurança?

blaze cadastre se Hélio Luz - Não, para isso, ele precisariablaze cadastre semais tempo eblaze cadastre seuma discussão mais ampla sobre um projetoblaze cadastre sesegurança. Mas ele pode recuperar a estrutura existente.

O grande problema que temos é quem executa a segurança pública. Os integrantes das polícias Militares e Civil. Se o general recuperar as estruturas internas, os agentes que provocam a insegurança ficarão limitados ao ambiente externo.

O problema do Rio não são os bandidos. O problema do Rio são os mocinhos. Se ele recuperar o quadroblaze cadastre semocinhos, ele pode dar uma atenção real ao quadroblaze cadastre sebandidos.

blaze cadastre se BBC Brasil - O mocinho é o policial?

blaze cadastre se Hélio Luz - Não só o policial. São os integrantes do sistemablaze cadastre sesegurança que operam no Estado do Rio. Pode ser bombeiro, agente penitenciário, policial rodoviário. É preciso transformar o mocinhoblaze cadastre semocinho.

Crime organizado pressupõe atuação a nível nacional, formaçãoblaze cadastre seum cartel e inserção nos poderes da República. O que denominam "bandidos" no Rio, e tenho ojeriza a isso, não é crime organizado. O tráfico no Rio não é cartelizado e disputa permanentemente a área geográfica. Não tem um exército ou integrantes constantes. Tem muitos problemas internos.

O pessoal não percebe que isso é um produto da sociedade. Esses meninos que estão no tráfico são um produto direto nosso, da classe média, dos detentores do poder desse país.

blaze cadastre se BBC Brasil - São um produto da desigualdade social?

blaze cadastre se Hélio Luz - São um produto da concentraçãoblaze cadastre serenda. E não venha me dizer que a Índia ou outros países com desigualdade não têm esse problema. Aqui é diferente, pô. O nosso nívelblaze cadastre seconcentraçãoblaze cadastre serenda é muito alto e resulta nisso.

A favela é produto nosso. Como é que não é produto dos que detêm o poder? Como é que não é produto da classe média? É produto meu. Como é que eu tenho aposentadoria integral e não tenho responsabilidade sobre a favela? Para eu ter meus privilégios, tem que existir favela. Isso é óbvio. O dinheiro público é um só. Se eu abocanho uma maior parte, falta do outro lado. Não há saída para isso.

Ele (o general) tem condiçãoblaze cadastre serecuperar as estruturas policiais e beneficiar o segmento que mais sofre com essa parafernália toda, o favelado, que é estigmatizado.

Lógico que para isso ele vai precisarblaze cadastre seum grupoblaze cadastre sepoliciais civis e militares que não usem o tal do guardanapo da cabeça. Não pode. Polícia que gostablaze cadastre sebotar guardanapo na cabeça não serve para recuperar.

Militar com rosto encoberto

Crédito, Reuters

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Constitucional, inédita e oportunista - assim ex-chefe da polícia civil vê intervenção federal na segurança do Rio

blaze cadastre se BBC Brasil - O senhor está falando do ex-governador Sérgio Cabral e do famoso jantarblaze cadastre seParis, com a farra dos guardanapos na cabeça.

blaze cadastre se Hélio Luz - É isso. Você pode ter um guardanapo para limpar ablaze cadastre seboca, com dinheiro privado. Na hora que você bota o guardanapo na cabeça, é dinheiro público.

Retirar a turma do guardanapo na cabeça é difícil, mas o general pode isolá-los, neutralizá-los. Não precisam ser todos. Na hora que neutraliza uma parte considerável, o restante se enquadra.

A partir disso, ele tem condiçõesblaze cadastre sereduzir as açõesblaze cadastre sevigilância ostensiva que essas GLOs (operações militares para Garantiablaze cadastre seLei e da Ordem) fazem, com tropas nas favelas estigmatizando essas áreas. Como se o problema estivesse dentro das favelas. Não está.

Como ele tem um comando inédito do sistema, ele pode priorizar investigações integradas e coordenadas para prender os agentes externos da insegurança.

Eu tenho muita dificuldadeblaze cadastre sechamarblaze cadastre sebandido. Aqui no Brasil, chamar o pessoal que mora na favelablaze cadastre sebandido éblaze cadastre seuma incoerência tremenda. O bandido brasileiro usa terno e gravata.

Se ele (o general Braga Netto) quiser aprofundar as investigações, ele vai parar nas mesasblaze cadastre secâmbio que operam na avenida Rio Branco (no centro do Rio).

Ninguém pode imaginar que o menino da favela tenha capital o suficiente para bancar os entorpecentes que circulam ali. Quem detém o capital que financia as drogas tem uma mesa que opera câmbio na Rio Branco e um filho que frequenta bons colégios. Se o general chegar lá, aí realmente vai estar combatendo o crime e melhorando as condiçõesblaze cadastre sesegurança do Rio.

Militar caminhablaze cadastre sefavela ao ladoblaze cadastre seavenida

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Para Hélio Luz, desigualdade social é indissociável da violência no país

blaze cadastre se BBC Brasil - O senhor diz que o general pode reduzir a ação ostensivas nas favelas, mas a expectativa é que essas ações possam aumentar, e semana passada vimos operações militares inclusive com fichamentoblaze cadastre semoradores.

blaze cadastre se Hélio Luz - O problema é que até agora foram operaçõesblaze cadastre seGLO, e elas repetem o trabalhoblaze cadastre sevigilância que a polícia já fazia.

Se ficar operando nessa linha, só vai enxugar gelo. Vai ocorrer o mesmoblaze cadastre sesempre. O pessoal (os traficantes) se afasta porque não quer confronto, mas depois retorna.

Por que fazer uma operação para cercar uma favela, se o crime não está ali? O cerne da questãoblaze cadastre seinsegurança não está ali. Aquilo ali é resultado.

blaze cadastre se BBC Brasil - Em blaze cadastre se Notíciasblaze cadastre seUma Guerra Particular blaze cadastre se , o senhor diz que a sociedade brasileira tem a polícia que quer, que garante uma elite com privilégios e uma lei que não vale para todos. O senhor acha que isso mudou?

blaze cadastre se Hélio Luz - Essa pergunta é difícil. Acho que o Brasil que vivemos na décadablaze cadastre se60 mudou. Tivemos avanços. Naquela época não podia se falar nada sobre um senador (sobre ações ilícitas). Hojeblaze cadastre sedia, um senador está vulnerável.

Mas um dos grandes problemas que temos nesse país é a tolerância com a ação à margem da lei. Vivemosblaze cadastre seum tempoblaze cadastre seque é admitido você ficar na franja. Os atos inconstitucionais estão se normalizando. A violação à lei está sendo admitida com muita tranquilidade.

Qual é a referência que se dá ao infrator que está lá na ponta? Quando a infração é praticada pelo excluído, você chama o Exército. Quando é praticada pela classe média e pelos detentores do poder, nada.

Se a lei é para ser cumprida na favela, é para ser cumprida por todo mundo. Ou a lei vale para todos ou não vale para ninguém.

Hélio Luz, ex-chefe da Polícia Civil
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Falablaze cadastre seHélio Luzblaze cadastre sefilme marcou debate sobre segurança pública | Foto: Arquivo pessoal

blaze cadastre se BBC Brasil - No documentário, o senhor disse que a repressão policial evitava uma explosão social, mantendo o excluído sob controle. Essa lógica prevalece?

blaze cadastre se Hélio Luz - Sim. Na África do Sul, eles colocavam cercablaze cadastre searame. Aqui não precisa colocar a cerca, porque cada um sabe o seu lugar. Então para quê você vai colocar uma operação dessas cercando a favela? O crime não está ali. Entende? O cerne da questão da insegurança não está ali. Aquilo ali é resultado.

Agora, a má distribuiçãoblaze cadastre serenda voltou a se acirrar, a polícia não deu mais conta e teve que chamar o Exército.

blaze cadastre se BBC Brasil - O senhor fala na concentraçãoblaze cadastre serenda, mas isso explica o fortalecimento das facções criminosas e as crescentes disputas por territórios?

blaze cadastre se Hélio Luz - Desculpe, mas isso é uma visão que só quem tem privilégios nesse país pode ter. Porque localiza a disputa lá na ponta. "Não, não somos nós que participamos disso. São eles." Eles quem? Os excluídos do patrimônio público. A guerra está entre eles, mas é sustentada pela turmablaze cadastre secima.

É preciso estabelecer uma relação entre o auxílio-moradia (benefício pago a juízes) e a parte considerável da população que não tem moradia. Essa relação causa-efeito existe nesta eblaze cadastre seinúmeras questões.

Em todas elas, quem paga a conta no final é o favelado. Somos o país da desigualdade. E ficamos preocupados porque tem problema, entende, na senzala. Afrouxou a senzala, então agora tem que apertarblaze cadastre senovo. Então chama o capitão do mato para dar uma solução na senzala do século 21.

O problema social está no centro da questão da favela, e a questãoblaze cadastre sesegurança do Estado é uma decorrência. Quem financia a droga que está lá? É um deboche achar que o favelado tem capital suficiente para bancar a ida, vinda e perdablaze cadastre sequalquer quantidadeblaze cadastre seentorpecentes.

blaze cadastre se BBC Brasil - Não seria o favelado que teria esse dinheiro, mas sim as facções criminosas.

blaze cadastre se Hélio Luz - Será que elas têm? Qual é a herança deixada por traficantes? Qual foi a herança deixada pelo Uê (Ernaldo Pintoblaze cadastre seMedeiros, fundador da facção Amigos dos Amigos)? Qual é o acúmuloblaze cadastre setodos esses chefetes que existiram?

blaze cadastre se BBC Brasil - Mas não é patrimônio acumulado, e simblaze cadastre secapitalblaze cadastre segiro do tráfico.

blaze cadastre se Hélio Luz - Eles não têm dinheiro acumulado. Como é que você acumula dólar? Vemos muitas simplificações quando se fala sobre o tráfico. Aí mostram a mansão do chefete que foi preso na favela. É ridículo isso. A cobertura dele é num terceiro andar com piscina na laje. Perto dos prédios que existem na Vieira Souto, na Delfim Moreira (na orlablaze cadastre seIpanema e Leblon). Qual é o conceitoblaze cadastre semansão?

Fala-se que que eles acumulam dinheiro e estão bem organizados. Onde, se estão disputando boca por boca (de fumo)? Onde há crime organizado com disputablaze cadastre seterritório permanente? Não existe. Se o cara tivesse dois milhõesblaze cadastre sedólares disponíveis, ele saía da favela e ia ser rentista (risos).

Meninos brincamblaze cadastre sepipa no Alemão

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Meninos brincamblaze cadastre sepipa no Alemão; Hélio Luz fala que ocupação do complexo foi 'ilusão'

blaze cadastre se BBC Brasil - Vemos sucessivos exemplosblaze cadastre setraficantes presos que continuam a dar ordensblaze cadastre sedentro da prisão, com o Nem da Rocinha. Como isso ainda acontece?

blaze cadastre se Hélio Luz - Essa condição quem dá é o sistemablaze cadastre sesegurança. O cara faz o controle por meioblaze cadastre seagentes penitenciários. Ou é só o ex-governador (Sérgio Cabral) que tem acesso a uma comida especial (no presídio)? O mesmo caminho é usado no Rio, no Paraná oublaze cadastre sequalquer Estado. O sistemablaze cadastre sesegurança é vazado.

A classe média tem uma visão distorcida disso. Acha que a ponta está se organizando. Nada disso. É a desorganização do sistema penitenciário que permite que ordens saiam dos presídios.

Nós vivemos muitoblaze cadastre seilusão. É muita ficção. A tomada do Alemão foi uma ilusão. O Complexo do Alemão nunca foi tomado. Mas por um momento aquilo (a operaçãoblaze cadastre seocupação realizada por forçasblaze cadastre sesegurançablaze cadastre se2010) gera uma sensaçãoblaze cadastre sesegurança, e você se ilude.

Quem detém o controle? Quem recebe a corrupção ou o cara que paga? É o agente que recebe a corrupção. É quem recebe a grana. Se não pagar para a polícia,blaze cadastre seduas uma, ou você se muda, ou vai para a vala.

Sem pagar a polícia, não se pratica crime no Rioblaze cadastre seJaneiro.

blaze cadastre se BBC Brasil - Os problemasblaze cadastre sesegurança no Rio hoje não parecem muito diferentes dablaze cadastre seépoca à frente da Polícia Civil, nos anos 1990. Que perspectiva o senhor vê para o futuro?

blaze cadastre se Hélio Luz - Eu sou otimista. Acho que essas crises são crisesblaze cadastre seavanços. Não estamosblaze cadastre seuma situação horrível. Quem viveu nos anos 60, 70 sabe que jamais se podia apontar o dedo para um senador.

Tudo que está acontecendo (os casosblaze cadastre secorrupção) acontece há muito tempo nesse país. Sempre houve, mas agora nós sabemos. Agora vem a público. O Marcelo Odebrecht passar quase dois anos numa prisão é simbólico. A exposição do Judiciário com o caso do auxílio-moradia é simbólico.

Ainda é pouco, mas estamos avançando. Os desdobramentos são feitos à brasileira. É uma revolução republicana sem sangue. Aos poucos, a república vai se instalando.