Negra e filharoleta da sportingbetdoméstica: quem foi Maria D’Apparecida, primeira brasileira a cantar na Óperaroleta da sportingbetParis:roleta da sportingbet

O vídeo a intrigou — continha apenas o retrato oníricoroleta da sportingbetuma mulher com pele azul; uma faixaroleta da sportingbetáudio, gravada no Theatro Municipal do Rioroleta da sportingbetJaneiro; e o nome da intérprete, a mezzo-soprano Maria D’Apparecida.

"A voz era linda, e fiquei curiosa por ser uma cantora brasileira da qual eu nunca tinha ouvido falar. Então, caí noutro vídeo, dela se apresentandoroleta da sportingbetParis", lembra Dione.

Trata-seroleta da sportingbetuma filmagemroleta da sportingbetpreto e branco, realizada pela televisão francesa num domingo, 2roleta da sportingbetjaneiroroleta da sportingbet1966.

D’Apparecida, sorridente e acompanhada pelo pianista Jack Diéval, anunciaroleta da sportingbetportuguês: "Esta noite, estou aqui entre vocês para cantar uma melodia do meu Brasil."

Na sequência, a dupla executa Tamba-Tajá, cançãoroleta da sportingbetWaldemar Henrique inspirada numa lenda indígena do povo Macuxi. Pouco a pouco, a câmera se aproxima, e o rosto da intérprete ocupa todo o quadro.

Como Dione, Maria D’Apparecida era negra.

"Por razões óbvias, quis saber mais sobre aquela mulher", conta a dramaturga.

"Mas quando joguei o nome dela no Google, fiquei revoltada com o que li."

A cantora morrera no dia 4roleta da sportingbetjulhoroleta da sportingbet2017, aos 91 anos. Sem filhos nem herdeiros, viviaroleta da sportingbetParis há maisroleta da sportingbetmeio século e mantinha-se longe das ruas — suas últimas apresentações teriam ocorrido na décadaroleta da sportingbet1990.

Isolada no próprio domicílio, sem acesso à internet, escrevia regularmente e costumava se ajoelharroleta da sportingbetfrente a imagensroleta da sportingbetsantos. Ela não atendia o telefone e devolvia todas as cartas que chegavam do Brasil.

O contato com o mundo externo se dava exclusivamente pelas visitasroleta da sportingbetuma empregada, que batera àroleta da sportingbetporta naquela terça-feira, às 13h30.

A patroa, tomando banho, lhe pediu que voltasse mais tarde — e não respondeu mais. No dia seguinte, vizinhos se queixaram da água escorrendoroleta da sportingbetseu apartamento. O corporoleta da sportingbetMaria D’Apparecida flutuava na banheira.

Em vida, a intérprete lançara maisroleta da sportingbetvinte discos, excursionando por toda Europa. Em 1981, recebeu do então prefeitoroleta da sportingbetParis Jacques Chirac a Medalha da Cidaderoleta da sportingbetParis. Anos depois, o presidente francês François Mitterrand lhe concederia o títuloroleta da sportingbetOficial da Legiãoroleta da sportingbetHonra, uma das mais altas condecorações do governo francês. Apesar disso,roleta da sportingbetmorte não foi imediatamente noticiada.

"Mororoleta da sportingbetParis há 38 anos e nunca tinha ouvido falar na Maria D’Apparecida", afirma a jornalista sul-mato-grossense Mazé Torquato Chotil.

"Um pianista brasileiro, amigo do meu marido, veio almoçar aquiroleta da sportingbetcasa e perguntou se a gente tinha visto uma postagem sobre ela nas redes sociais."

O Consulado-Geral do Brasil veiculara um anúncio, duas semanas após o falecimento. O corpo da cantora permanecia no Instituto Médico Legalroleta da sportingbetParis, e a entidade diplomática tentava contatar seus familiares. Caso ninguém se apresentasse, D’Apparecida seria enterrada como indigente.

"Daí fui pesquisar a carreira dela", relata Mazé. "Mas senti que havia pouquíssima informação disponível."

Para seu espanto, a mezzo-soprano surgiaroleta da sportingbetfotos com Heitor Villa-Lobos, Baden Powell, Tom Jobim e Viniciusroleta da sportingbetMoraes.

Relatos davam contaroleta da sportingbetque se apresentara na Óperaroleta da sportingbetParis, a mais tradicional companhia do gênero na França.

Carlos Drummondroleta da sportingbetAndrade dedicou-lhe um poema, dizendo: "Tua voz caminheira nos conta do que paira além da ciência dos Conservatórios e do tratamento operístico da vida. É uma voz que vem das entranhas do vento e dos coqueirais, do sigilo dos minérios e das formações vulcânicas do amor."

A jornalista foi tomada pela dúvida: "Fiquei me perguntando como é que alguém dessa importância havia caídoroleta da sportingbettamanho esquecimento. De onde ela vinha? Qual trajeto seguiu?"

Em buscaroleta da sportingbetrespostas, Mazé vasculhou arquivos e conheceu figuras próximas a D’Apparecida — entre elas, Mara Guimarães, amiga e assessoraroleta da sportingbetimprensa, e Emie Fernandez, empregada que a acompanhara no fim da vida.

Sua investigação resultaria no livro Maria D’Apparecida, Negroluminosa Voz, lançado pela editora Alamedaroleta da sportingbet2020.

"Meu olhar não é oroleta da sportingbetum especialistaroleta da sportingbetmúsica", explica. "Sou apenas uma autora que se interessa pelo viés humano das coisas. Eu queria desvendar a existência dessa mulher, seus sentimentos no exílio. Só que ela nunca gostouroleta da sportingbetfalar sobre si mesma e não está mais aqui para me dar entrevistas."

Um ano depois, anseios semelhantes inspirariam Dione na feituraroleta da sportingbetMaria D’Apparecida, Luz Negra. Originalmente concebido como espetáculo presencial, o projeto veio a público no auge da pandemiaroleta da sportingbetcovid-19,roleta da sportingbetformaroleta da sportingbetminissérie online. A própria dramaturga interpreta D’Apparecida.

"A reação dos espectadores é sempre paradoxal, uma misturaroleta da sportingbetchoque, orgulho e tristeza", diz.

"Encaramos esse trabalho como uma grande homenagem a ela, e um primeiro esforço para se contar, através das artes, aroleta da sportingbethistória"

Em maioroleta da sportingbet2022, a empreitada ganhou um novo desdobramento: a publicação, na França,roleta da sportingbetÓpera Negra, biografiaroleta da sportingbetquadrinhos realizada pela artista plástica Clara Chotil — filharoleta da sportingbetMazé.

O livro acabaroleta da sportingbetser lançado no mercado brasileiro pela editora Veneta.

"Me juntei à minha mãe na tentativaroleta da sportingbetdar uma nova cor a essa história”, diz Clara.

"Foi um processo demorado, pois eram imensos os riscosroleta da sportingbetse produzir uma HQ ruim. A vidaroleta da sportingbetMaria D’Apparecida é cheiaroleta da sportingbetingredientes melodramáticos, e há uma grande lacuna naquilo que sabemos sobre ela. Ao mesmo tempo,roleta da sportingbetvivência diz respeito a emoções que todo brasileiro experimenta na França."

'Acho que todo brasileiro tem vocação'

Maria D’Apparecida nasceu no dia 17roleta da sportingbetjaneiroroleta da sportingbet1926. Nove meses antes,roleta da sportingbetmãe, empregada doméstica, trabalhara para uma família ricaroleta da sportingbetSão Paulo.

Ao ser engravidada pelo filho do chefe, foi imediatamente demitida. Quando deu à luz, prestava serviços para um casal católico na Tijuca, zona norte do Rioroleta da sportingbetJaneiro.

A cantora nunca conheceu o pai. Aos oito anos perdeu a mãe, vítimaroleta da sportingbettuberculose, e daquele momentoroleta da sportingbetdiante seria criada pelos patrões.

"Ela se beneficiouroleta da sportingbettudo que essa família pôde dar", explica Mazé.

"Teve aulasroleta da sportingbetpiano e balé, frequentou bons colégios, aprendeu línguas, jogou tênis. Tudo que as irmãsroleta da sportingbetcriação tiveram, ela teve também."

No início da vida adulta, dividiu-se entre o magistério e a locução. Durante o dia, alfabetizava criançasroleta da sportingbetescolas primárias; à noite, narrava histórias infantisroleta da sportingbetemissoras como Globo, Eldorado, Roquette Pinto e Rádio Nacional.

Foi então que se inscreveu num baile, o Rainha das Mulatas – segundo jornais, o "primeiro concursoroleta da sportingbetbeleza colored" da capital fluminense.

O evento, promovido pelo ativista Abdias Nascimento eroleta da sportingbetcompanhia, o Teatro Experimental do Negro, ocorreuroleta da sportingbetsetembroroleta da sportingbet1947.

"Para homenagear a flor da misturaroleta da sportingbetraças que se processaroleta da sportingbetnossa terra, compareceram cercaroleta da sportingbet5 mil pessoas", anunciou a imprensa.

"Genteroleta da sportingbettodas as classes sociais se confraternizou naquela autêntica noiteroleta da sportingbetdemocracia étnica."

D’Apparecida foi premiada com o primeiro lugar. Textos da época se referiam a ela como donaroleta da sportingbetuma "carinha brejeira" e "curvas capazesroleta da sportingbetentontecer qualquer mortal".

Joãoroleta da sportingbetBarros e Antônio Almeida se inspiraram naroleta da sportingbetfigura para compor uma marchinha, A Mulata é a Tal, grande sucesso do carnavalroleta da sportingbet1948. Todavia, a jovem carioca não estava satisfeita com os rumos da própria vida.

"Descobri que era péssima professora", relataria numa entrevista ao Pasquim.

"Então começaram a dizer, 'vamos botar plumas aqui, mostrar as pernas, fazer isso e aquilo'. Fiquei tentada, mas não tive coragem."

Entretanto, gostavaroleta da sportingbetcantar: "Acho que todo brasileiro tem vocação. Você vê, choferroleta da sportingbettáxi, empregada doméstica, todos cantam. Só que eu, mulata pernóstica, queria fazer ópera."

No finalroleta da sportingbet1949, formou-seroleta da sportingbetcanto lírico pelo Conservatório Brasileiroroleta da sportingbetMúsica. Sua instrutora, Grazielaroleta da sportingbetSalerno, apresentava-se regularmente no Theatro Municipal do Rioroleta da sportingbetJaneiro.

Ali, D’Apparecida assistiu às apresentaçõesroleta da sportingbetduas das maiores sopranos da história — a italiana Renata Tebaldi e a greco-americana Maria Callas.

Encantada, desejou se apresentar naquele palco, mas não foi aceita, por ser negra.

"Mulheres como ela eram associadas ao samba", observa Dione.

"Afinal, devemos caber na negritude que inventaram para a gente. Mas como quebrar tais expectativas sem entrar numa lógicaroleta da sportingbetembotamentoroleta da sportingbetnós mesmas? Para não desistir do próprio sonho, Maria criou estratégiasroleta da sportingbetsobrevivência. Acho isso magnífico, e ao mesmo tempo terrível", afirma.

"Precisamos tomar cuidado para não transformá-la numa heroína feliz.”

'Eu daria umaroleta da sportingbetStefan Zweig'

A ligação das mulheres negras com a ópera antecede o nascimentoroleta da sportingbetMaria D’Apparecidaroleta da sportingbetpelo menos 130 anos.

Já no final do século 18, a mineira Joaquina Lapinha atravessara diversas cidades portuguesas, apresentando-se com o rosto pintadoroleta da sportingbetbranco.

Em 1921, Zaíraroleta da sportingbetOliveira ganhou uma viagem à Europa num concurso promovido pelo Instituto Nacionalroleta da sportingbetMúsica, mas a corroleta da sportingbetsua pele fez com que o júri lhe recusasse o prêmio.

Na décadaroleta da sportingbet1950, Maura Moreira deparou-se com inúmeras adversidadesroleta da sportingbetterritório brasileiro — e acabou se radicando na Alemanha, onde recebera uma bolsaroleta da sportingbetestudos.

Histórias semelhantes foram encontradas por Clara durante as pesquisas que realizou pararoleta da sportingbetHQ. A artista plástica notou que essas personalidades tinham algoroleta da sportingbetcomum: cada uma delas era considerada a primeira mulher negra a despontar como cantora lírica no Brasil.

"Isso apenas ressalta a importância da trama que contamos", declara.

"Me parece bastante árduo o trabalhoroleta da sportingbetse abrir uma porta,roleta da sportingbetser a primeira pessoa a atingir um objetivo. É algo que transcende o nosso talento, as nossas forças", observa a artista plástica.

"Quando a gente esquece das portas que foram abertas por alguém, estamos condenando os sucessores a carregarem novamente esse fardo. Nesse sentido, acredito que Maria seja muito atual."

A cantora sempre relembrava obstáculos: "Coragem nunca me faltou. Apresentei-meroleta da sportingbetalguns recitais por aqui, depois os amigos insistiram que eu fosse para a Europa", declarou D’Apparecida.

Noutra entrevista, evocando o suicídio do célebre escritor austríaco, disse: "Estabeleci um tempo para vencer. Caso contrário, daria umaroleta da sportingbetStefan Zweig."

Em 1959, D’Apparecida se estabeleceuroleta da sportingbetParis. Ali, conheceria Félix Labisse — cenógrafo, pintor surrealista e entusiasta da cultura afro-brasileira.

Casado e vinte anos mais velho, ele a empregou inicialmente como modelo;roleta da sportingbetseguida, tornaram-se amantes, com anuênciaroleta da sportingbetsua esposa.

A parceria deu origem a pelo menos quatorze quadros, nos quais D’Apparecida é retratada nua,roleta da sportingbettons celestes, como filharoleta da sportingbetIemanjá. A ideia partiu da própria cantora, que notara a dificuldaderoleta da sportingbetLabisseroleta da sportingbetdar às tintas a corroleta da sportingbetsua pele.

Ela teria dito: "Pinte-meroleta da sportingbetazul. Assim, todos verão que não sou branca."

Junto ao artista, D’Apparecida conviveu com alguns dos principais nomes da cultura europeia no século 20. Labisse era próximo a pintores como Salvador Dalí e René Magritte; a cineastas como Federico Fellini e Alain Resnais; a escritores como Jacques Prévert e Raymond Queneau.

"Imagine você, um jantar entre essas pessoas", reflete Dione. "Por outro lado, quem era Maria naquela mesa? Labisse a colocou numa posiçãoroleta da sportingbetendeusamento, mas tambémroleta da sportingbetexotismo."

Como homem branco e europeu, talvez não tivesse condiçõesroleta da sportingbetacessar profundamente o que se passava na psique dela, avalia a dramaturga.

"De qualquer maneira, acredito que Maria tenha encontrado no surrealismo uma fuga dos padrões, um escape desse mundinho pequeno, todo um novo horizonteroleta da sportingbetformas líricas, oníricas, expandidas", considera.

'Ópera, pra mim, é festa'

D’Apparecida definia a si mesma nos seguintes termos: "Sou uma operária da música. Se no palco dou o melhorroleta da sportingbetmim, fora dele sou uma pessoa como outra qualquer. Andoroleta da sportingbetbotas e calça comprida."

Em 1960, apresentou-se pela primeira vez na televisão. Um ano depois, promoveria um recitalroleta da sportingbettemas folclóricos no Teatro do Odéon,roleta da sportingbetParis.

O programa era formado por obrasroleta da sportingbetquatro compositores brasileiros: Waldemar Henrique, Hekel Tavares, Ernani Braga e Heitor Villa-Lobos.

"Música linda, da qual ninguém toma conhecimento", diria a cantora.

"Aqui só queremos cantar Brahms, Schumann, Schubert. A princípio, achavam loucura eu incluir no repertório outros compositores. De minha parte, dou tanta importância à música lírica brasileira quanto à ópera."

No dia 16roleta da sportingbetagostoroleta da sportingbet1961, o dramaturgo Guilherme Figueiredo registrou impressões sobre o espetáculo: "Como se comportariam os franceses dianteroleta da sportingbetobras que, afinal, não possuem grande coisa do que se espera que seja a música popular brasileira, isto é, alguma coisa meio americana e meio cubana?", questiona.

"Como receberiam uma cantora erudita que, emboraroleta da sportingbetbeleza tipicamente nacional, não oferece à plateia estrangeira os requebros que ela obrigatoriamente esperaroleta da sportingbetuma cantora brasileira? Maria D’Apparecida venceu a prova. [...] O triunfo estava ali, na sala, na acolhida dos críticos, na imediata repercussão manifestada por convites e contratos."

D’Apparecida logo se tornaria a primeira brasileira a ingressar no corpo artístico da Óperaroleta da sportingbetParis. Quando o jornalista Hélio Oliveira, do Diário Carioca, perguntou como chegara até lá, respondeu: "Trabalhando como uma negra."

Em diálogos com a imprensa, a cantora defendia abertamente a modernizaçãoroleta da sportingbetsua arte: "Com a televisão e com o cinema, esse negócioroleta da sportingbetópera tem que ser um troço assim muito pra frente, entendeu? A gente tem que fazer um circo. A gente tem que alegrar, tirar a poeira. Fazer um negócio assim, meio comédia musical, ligeiro, um pouquinho sapeca. Ópera, pra mim, é festa."

'Somos marginais'

Num sábado, 31roleta da sportingbetjulhoroleta da sportingbet1965, às 8h20, Maria D’Apparecida desembarcou no Aeroporto Internacional do Galeão.

Naquela manhã, a mezzo-soprano retornava ao Brasil para as comemorações oficiais do quarto centenário do Rioroleta da sportingbetJaneiro.

O Theatro Municipal, que rejeitara a cantora negra, fora o palco escolhido para a temporada lírica da festividade.

Mas agora, D’Apparecida vinha como integranteroleta da sportingbetuma trupe francesa, com a qual interpretaria a protagonista da ópera Carmen,roleta da sportingbetBizet.

No dia 18roleta da sportingbetagosto, antevéspera da primeira apresentação, os ingressos se esgotaram.

"Não consigo dormir", admitia a artista. "Estouroleta da sportingbetpermanente estadoroleta da sportingbettensão. Não é fácil estar longeroleta da sportingbetnossa terra,roleta da sportingbetnossa gente, mesmo quando se encontra o carinho que eu, graças a Deus, soube achar fora do Rio."

Carmen era, desde o século 19, uma das obras mais popularesroleta da sportingbettodos os tempos. Sua estreia ocorreraroleta da sportingbetmarçoroleta da sportingbet1875, na Óperaroleta da sportingbetParis; três anos depois, chegaria à Academiaroleta da sportingbetMúsicaroleta da sportingbetNova York, propagando-se por todo o continente americano.

No Brasil, as primeiras encenações foram realizadas pela companhiaroleta da sportingbetum empresário francês, Maurice Grau,roleta da sportingbetjunhoroleta da sportingbet1881, no Theatro Imperial do Rioroleta da sportingbetJaneiro.

Dali a cinco meses, o filósofo Friedrich Nietzsche a assistiria pela primeira vez, na cidade italianaroleta da sportingbetGênova: "Quase chego a pensar que Carmen é a melhor ópera que existe", escreveu na ocasião. "Enquanto nossa geração viver, ela estarároleta da sportingbettodos os repertórios europeus."

Baseado no romance homônimoroleta da sportingbetProsper Mérimée, o espetáculo narra os desdobramentosroleta da sportingbetum triângulo amoroso entre o soldado Don José,roleta da sportingbetnoiva Micaela e a cigana Carmen, que hipnotiza todos os homens a seu redor.

Por ela, o militar abandona o quartel e a antiga companheira, envolvendo-seroleta da sportingbetoperaçõesroleta da sportingbetcontrabando e disputas físicas com um outro pretendente, o toureiro Escamillo. Tomado pelo ciúme, Don José esfaqueia a cigana até a morte, pouco se importando com a multidão que assiste ao crime.

Embora a ópera fosse ambientada na Espanha, versões posteriores introduziram seus personagens ao imaginário negro.

Carmen Jones, musical encenado na Broadway a partirroleta da sportingbet1943, atualizou a trama para os EUA da Segunda Guerra, com um elenco inteiramente afro-americano.

Onze anos mais tarde, Otto Preminger dirigiu uma adaptação cinematográfica da peça, fazendo da protagonista Dorothy Dandridge a primeira negra a ser indicada ao Oscarroleta da sportingbetmelhor atriz.

D’Apparecida, sob possível influência desses trabalhos, também afastava a personagem do prisma europeu.

"Carmen poderia ser carioca", disse ao Pasquim. "Ela é assim, saliente, molecaroleta da sportingbetmorro. Honesta nos princípios dela, mas uma barra pesada, né?"

As apresentações no Municipal, contudo, não ocorreram como previsto.

Quando a mezzo-soprano pegou uma gripe, as enfermeiras do teatro se recusaram a atendê-la. No camarim, foi hostilizada por colegas brasileiras.

Uma delas teria dito: "Por que vocês correm atrás dessa Maria D’Apparecida? Ela parece uma negrinha que compra pão para a patroa."

Mais tarde, a artista comentaria o episódio: "Fico com pena. Na época atual, ter uma reação dessa natureza é o fim. O preconceito existe. Negro, judeu, pederasta, somos marginais."

Semanas depois, a cantora apresentou o mesmo espetáculo na capital francesa.

Lá, a recepção foi diferente: "D’Apparecida é, sem dúvida, a Carmen mais completa que já conhecemos", anunciou o jornal Le Parisien.

"Sua voz tem os graves do violoncelo e os agudosroleta da sportingbetum metal brilhante, sem rachaduras. Ela vive do começo ao fim essa aventura, canalha e tenra, alegre e melancólica, dramática e exuberante. Uma descoberta sensacional."

'Em meu país, uma negra só pode ser pedante'

Maria D’Apparecida vinha demonstrando um crescente interesse pelo tema da negritude. Em 1964, atravessara a África, observando a luta dos movimentos anticoloniais que eclodiam no continente.

Ao apresentar-seroleta da sportingbetBerlim, no segundo semestre daquele ano, fora assistida pelo pastor Martin Luther King. Em 21roleta da sportingbetmarçoroleta da sportingbet1968, participariaroleta da sportingbetuma manifestação antirracista no anfiteatro da Universidade Sorbonne,roleta da sportingbetParis.

A politização da cantora atingiu o ápiceroleta da sportingbetdezembroroleta da sportingbet1974, por meioroleta da sportingbetum acidente quase fatal: o táxi que a transportava bateu noutro veículo, arremessando seu corporoleta da sportingbetdireção ao vidro.

D’Apparecida, com o rosto disforme, a voz prejudicada e sob o risco da cegueira, enfrentaria três anosroleta da sportingbetconvalescença e cirurgias.

Nesse ínterim, leu o romance Negras Raízes, best-sellerroleta da sportingbetAlex Haley sobre as heranças da escravidão nos EUA.

"Ela já tinha pegado todo o rebote do movimento pelos direitos civis", afirma Dione.

"E a partir dessa leitura, foi refletindo sobre a própria história, travando um contato muito profundo consigo mesma, se entendendo definitivamente como mulher negra. Foi uma espécieroleta da sportingbetmotor para que ela reinventasse a própria vida,"

Em parte, o novo fôlego seria canalizado no misticismo: "Eu, que havia perdido um pouco a fé, fiqueiroleta da sportingbettal maneira vulnerável que senti necessidaderoleta da sportingbetentender as outras religiões", declarou a mezzo-soprano.

"O simples atoroleta da sportingbetacordar é um milagre. Que o Deusroleta da sportingbetcada um seja Cristo, Buda ou Maomé, não faz diferença alguma. O importante é agradecer."

Na vida pública, a transformação mais evidente se deu pelo repertório.

A partirroleta da sportingbet1977, D’Apparecida migraria do canto lírico para a MPB — lançando,roleta da sportingbetmeados daquele ano, o primeiro álbum dessa nova fase, na companhia do violonista Baden Powell.

"Arrisquei meu nome na ópera porque quis provar a mim mesma que também podia cantar música popula", disse. "Sempre dou algumas explicações ao público sobre a letra, dizendo quem é o compositor, para que não fiquem achando que é tudo igual, sobre pássaros, mar e mulher."

No disco seguinte, Construction, a intérprete gravaria Chico Buarque, Noel Rosa, Ataulfo Alves, Tom Jobim e Viniciusroleta da sportingbetMoraes. Tal guinada marcava um esforçoroleta da sportingbetreconciliação com as próprias origens — D’Apparecida nunca solicitou a nacionalidade francesa, e morreu como cidadã brasileira.

"Esse sentimentoroleta da sportingbetinadequação,roleta da sportingbetnão pertencimento, é algo que a define muito", observa Clara.

"Ela estava no meio do caminho, nem aqui e nem lá, na fronteira do erudito com o popular, mas tinha uma postura leve com relação a isso. Ela vai cantar jazz, choro, samba e bossa nova, sempre orgulhosa da própria versatilidade", observa.

"Ao mesmo tempo, será tachadaroleta da sportingbetantipática, poisroleta da sportingbetfigura não cabia no estereótiporoleta da sportingbetmulher grata e servil."

Em 1978, D’Apparecida analisou essa questão.

"Em meu país, uma negra que canta ópera só pode ser pedante, se ela não for um prodígio. O sucesso me fez esquecer essa evidência, e a pequena morte que sofri fez-me reivindicar o direito à normalidade."

Cada vez menos conhecida no Brasil, a artista se mostrava impaciente com os rumos da terra natal:roleta da sportingbetúltima declaração pública aos patrícios foi uma carta aberta ao presidente Fernando Collorroleta da sportingbetMello,roleta da sportingbet1991.

"Não tenho capacidade emocional, física, nem dinheiro [...] para levar uma vida decente no nosso país", escreveu na ocasião.

"Há muito tempo escuto a mesma ladainha: isto aqui está horrível. Agora, parece que piorou. [...] Suas gracinhas já chegaram lá por Paris, e já não tenho mais cara para defender nosso país. Mas, como diz a canção, a gente vai levando... e eu continuarei sempre tentando segurar as pontas."

'Onde ela chega, nós todos chegamos com ela'

Segundo testemunhas, a cantora almejava publicar uma autobiografia.

"Ela chegou a anunciar o lançamento na imprensa, mas desistiu logoroleta da sportingbetseguida, achando que o projeto não tinha relevância alguma", afirma Mazé.

"Me parece difícil saber o quanto isso temroleta da sportingbetverdade, mas tudo indica que ela gostariaroleta da sportingbetser perpetuada."

Clara, porroleta da sportingbetvez, imagina que D’Apparecida tenha romantizado a própria história.

"Sinto que ela foi uma pessoa extremamente misteriosa", observa a quadrinista.

"Às vezes, é como se fosse personagemroleta da sportingbetsi mesma, narrando experiências verídicasroleta da sportingbetritmo ficcional, com alguns detalhes imprecisos e meio contraditórios. Se ela esboçou uma autobiografia no momentoroleta da sportingbetque saía da vida pública, o texto provavelmente retratava a Maria que ela desejava mostrar, não a mulher fragilizada queroleta da sportingbetfato era."

A existência dos manuscritos é incerta, mas acredita-se que façam parte do espólio da cantora.

No fim da vida, D’Apparecida vendera seu apartamento sob o sistema viager, uma modalidade contratual bastante difundida na França — o cliente paga mensalidades até que o morador venha a óbito, e então se apossa do imóvel.

Com a morte da brasileira, o novo proprietário tornou-se responsável por tudo que havia ali dentro — incluindo fotos, correspondências e trabalhos originaisroleta da sportingbetFélix Labisse. Desde então, os objetos permanecem num depósito self storage.

Junto a outros admiradores da mezzo-soprano, a jornalista Mazé Torquato Chotil integra uma associação voltada ao resgateroleta da sportingbetseu patrimônio cultural — a Les Amisroleta da sportingbetMaria D’Apparecida (Os Amigosroleta da sportingbetMaria D’Apparecida).

Antes que o grupo se oficializasse, membros já haviam se mobilizado para dar à cantora um túmulo: assim, no dia 8roleta da sportingbetsetembroroleta da sportingbet2017, o corporoleta da sportingbetMaria D’Apparecida foi retirado do IML e enterrado no Cemitérioroleta da sportingbetBagneux, ao sulroleta da sportingbetParis. Poucas pessoas compareceram à cerimônia.

Agora, a entidade move um processo judicial para recuperar os pertences da artista. Em setembro deste ano, seus representantes quitaram uma dívidaroleta da sportingbet36 mil euros (R$ 190 mil), acumulada no self storage pelo comprador do apartamento — a empresa, porém, não devolveu nenhum dos objetos que armazena.

Em casoroleta da sportingbetvitória nos tribunais, o acervo será digitalizado e entregue aos arquivos públicos brasileiros, junto a documentos já reunidos pelo grupo.

Segundo Mazé, outras ideias também estãoroleta da sportingbetcurso: batizar salasroleta da sportingbetconcerto com o nome Maria D’Apparecida; instalar uma placa emroleta da sportingbethomenagem no edifícioroleta da sportingbetque morava, próximo ao Arco do Triunfo; realizar celebrações públicasroleta da sportingbetseus aniversáriosroleta da sportingbetnascimento e morte.

"É assim que as memórias se perpetuam", diz a jornalista.

"Os grandes nomes da história são lembrados porque estão nos livros, museus, eventos, logradouros. Maria D’Apparecida precisa ser reapresentada à sociedade, e nossa associação surgiu para manter vivo o seu legado."

No futuro, semelhante iniciativa pode reverter um quadro que Dione classifica como grave: "Estamos dianteroleta da sportingbetum apagamento construído", afirma.

"É injustificável que essa mulher não seja citada nos conservatórios do Brasil. Ester Freire, maestrina negraroleta da sportingbetexperiência internacional que me deu preparação para o canto, nunca tinha ouvido falarroleta da sportingbetMaria D’Apparecida até trabalharroleta da sportingbetnossa minissérie. Isso diz muito", considera a dramaturga.

Mas como explicar o semi-anonimato da mezzo-soprano no exterior?

"Maria nunca ocupou o lugar que os franceses esperavam dela", responde Clara.

"Por ser negra e gravar compositores brasileiros, foi catalogada como mais uma cantoraroleta da sportingbetworld music. Esse é um rótulo para tudo que o público considera exótico ou pitoresco, e acredito que tenha contribuído para seu esquecimento aquiroleta da sportingbetParis", avalia a artista plástica.

Um textoroleta da sportingbetJorge Amado, reproduzido pela quadrinista nas últimas páginasroleta da sportingbetseu livro, talvez ilumine a discussão.

"Maria D’Apparecida conduz nossa verdade através da Europa. Onde ela chega, nós todos chegamos com ela", escreveu o autor baiano.

"Seu nomeroleta da sportingbetcantora é harmonia e mistério, rio e floresta, sombra e luz. Uma embaixatriz do Brasil junto a todos que amam a música, o canto e a poesia nos quatro cantos do mundo. Quem se aproxima dela, apaixona-se imediatamente. Quem a ouve cantar, não esquece jamais. Como esquecer Maria D’Apparecida? Impossível!"