Como Jorge Amado e Dorival Caymmi marcaram uma geração na URSS:app onabet

"A complexa relação entre vida real e mitos, talvez originários das tradições indígenas, fortemente entrelaçados com sexo (algo para o qual eu não estava preparada na época) faziam com que a história como um todo fosse estranhamente viva. Vibrante, com uma cultura totalmente diferente e única."

Foi assim que a jornalista Janina Litvinova, da BBC News Russia, descreveu suas impressões do romance Gabriela, Cravo e Canela, o primeiro livroapp onabetJorge Amado que leu, nos anos 1960/1970, na então União Soviética (URSS). Janina escreveu um artigo para a BBC News Brasil (Depoimento: 'Uma história estranhamente viva')app onabet2012, no centenário do nascimento do autor baiano.

Na ocasião, a BBC News Brasil tocou, com duas reportagens, pela primeira vez,app onabetum assunto pouco conhecido do público brasileiro: o impacto da obraapp onabetAmado na URSS, não apenas dos livros, mas, sobretudo,app onabetuma obscura adaptação americana para o cinemaapp onabetCapitães da Areia.

A música tema desse filme, Canção da Partida ('Minha jangada vai sair pro mar...'),app onabetDorival Caymmi, ganhou uma letraapp onabetrusso e se transformouapp onabetuma espécieapp onabethino da geraçãoapp onabetjovens que viviam na URSS nos anos 1970 e 80, a geração do presidente Vladimir Putin.

Amado e Caymmi despertaram no país comunista uma curiosidade que, com a ajudaapp onabetnovelas como Escrava Isaura e O Clone e os ocasionais hits internacionaisapp onabetlambada, axé e Michel Teló, acabou se transformando, para vários russos,app onabetum fascínio.

Esse fascínio é o temaapp onabetum episódio do podcast Que História!, da BBC News Brasil, apresentado por Thomas Pappon.

Jorge Amado e o comunismo

Na raiz dessa história está a chegada, à URSS, dos livrosapp onabetJorge Amado, uma aproximação que se deu principalmente pela ligação do autor com o comunismo, já bem no inícioapp onabetsua carreira.

Segundo Joselia Aguiar, autora do premiado livro Jorge Amado: Uma biografia, ele começou a se aproximar da esquerda logo que chegou ao Rioapp onabetJaneiro,app onabet1930.

"Pelo contato com outros artistas, escritoresapp onabetesquerda, por uma militânciaapp onabetesquerda que ele passa a frequentar, isso redunda naapp onabetentrada na Juventude Comunistaapp onabet1932", conta Joselia.

"Não é apenas uma aproximação que se dá por essas relações políticas, mas também pela leituraapp onabetliteratura operária, não só da União Soviética, como também dos Estados Unidos, por exemplo John dos Passos, Michael Gold… São autores que ele lê nesse momento e que vão levá-lo a criar um novo tipoapp onabetromance, e isso dá pra ser comparado quando você lê por exemplo O País do Carnaval, que é o primeiro romance dele -app onabetquando ele chega ao Rio - , e os dois que vêm na sequência, Cacau e Suor."

Os romancesapp onabetJorge Amado lançados nos anos 1930 e 1940 são marcados pela preocupação social e política; eles retratam a dura vidaapp onabetSalvador e a exploração e a injustiça social nas plantaçõesapp onabetcacau.

Nesse período, ele escreveu uma biografia do líder comunista Luis Carlos Prestes, e chegou a se eleger deputado federal pelo Partido Comunista. Credenciais que ajudaram a despertar o interesse pelo autor brasileiro na União Soviética, onde foi publicado pela primeira vezapp onabet1948.

"A primeira traduçãoapp onabetJorge Amado na Rússia foiapp onabetSão Jorge dos Ilhéus,app onabet1948, seguido logo por Seara Vermelha, conta o pesquisador americano William Rougle, autorapp onabetartigos acadêmicos sobre a aceitação da obraapp onabetautores latino-americanos na União Soviética.

"E esses dois romances foram escolhidos acima dos outros dos anos 30 porque o partido, ou os censores — ou o aparato —, acharam eles mais fiéis ao realismo socialista, que era a doutrina da estética da época."

Em 1951, Amado ganhou o prestigioso prêmio Stalin Internacional (rebatizado, décadas depois, como Prêmio Lenin da Paz), entregue a cada ano a estrangeiros que "fortaleceram a paz entre camaradas".

"É nesse momento que ele passa a ser conhecido entre os leitores soviéticos", conta Joselia Aguiar, "e na sequência ele lança aquele que, pros soviéticos, é o romance dele alinhado ao programa do realismo socialista, Subterrâneos da Liberdade."

Mas os ventos começaram a mudar na URSS após a morteapp onabetJosef Stalin,app onabet1953. Seu sucessor como Primeiro Secretário do Comité Central do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khruschóv, passou a promover a chamada "desestalinização", permitindo o relaxamento da repressão política e da censura, marcas das maisapp onabettrês décadasapp onabetpoderapp onabetStalin.

E é nessa época, que Jorge Amado começava a se distanciar do Partido Comunista e mudar seu estilo literário, com o lançamentoapp onabetGabriela, Cravo e Canela e Dona Flor e seus Dois Maridos — e se vê, subitamente, no augeapp onabetsua popularidade na URSS.

Joselia Aguiar diz que é "quando ele, já afastado do Partido Comunista, passa a fazer uma literatura que, na aparência, não é tão engajada e é mais relacionada a aquilo que se vai dizer que é o Jorge Amado da 'alegriaapp onabetviver'".

"Entre os leitores, nesse períodoapp onabetdesastalinização, ele é um autor aceito pelo regime que oferece um tipoapp onabetromance mais fora do padrão, principalmente com mais abertura para o humor", acrescenta.

"Tenho relatosapp onabetleitores desses países — e tambémapp onabetbrasileiros que moravam nesses países — sobre o sucesso desses livros. Por exemplo, os russos queriam entender como fazer as receitas que estavam no Dona Flor..., e procuravam brasileiros para tirar dúvidas, sobre que temperos ou molhos usar pra ter o mesmo resultado da Dona Flor", diz Joselia.

Alegriaapp onabetviver

Essa "alegriaapp onabetviver" abriu um novo mundo aos leitores do país, como contou à BBC News Brasil a jovem economista russa Victoria Melnikova, que, motivada pelo amor por novelas brasileiras, pesquisou o impacto da obraapp onabetJorge Amado na União Soviéticaapp onabetuma dissertação para o Smith College,app onabetNorthampton, Massachusetts.

"As pessoas precisavamapp onabetviagens", diz Victoria. "Havia muitas restrições para sair do país, e quando podia, você ia a um país vizinho, certamente não a um paraíso tropical. E com as históriasapp onabetAmado, as pessoas podiam viajar, talvez apenas na imaginação e nos sonhos, mesmo assim, era uma escapada da dura realidade soviética."

"A gente via os brasileiros como pessoas intensas, radiantes, que sabem viver. Um contraste com o cotidiano cinza e uniforme na União Soviética. Esse mundoapp onabetcores vibrantes,app onabetromance e paixão,app onabetque era permitido expressar seus sentimentos e desejos…era uma libertação para os leitores."

"Outro ponto", continua Melnikova, "é que os russos se identificavam com os baianos que Amado retrataapp onabetseus livros. As pessoas se identificavam com suas dificuldades. Na URSS também havia pobreza, corações partidos, amizades… Havia essa tensão com religião. E mesmo tendo emoções e sentimentos mais reprimidos, os leitores tinham curiosidade sobre essas coisas. E os livrosapp onabetAmado permitiam que eles explorassem isso."

'Capitães da Areia'

Se os livrosapp onabetJorge Amado abriram um "novo mundo" para os leitores soviéticos, uma obscura adaptaçãoapp onabetCapitães da Areia se encarregouapp onabetsedimentarapp onabetvez o encanto da Bahia no imaginárioapp onabetmuitos soviéticos.

O filme americano The Sandpit Generals (nome que traduzido ao pé da letra seria 'Generais do Areal'), dirigido por Hal Bartlett e finalizadoapp onabet1971, levou, pela primeira vez à URSS, imagem, movimento, cores e som a uma história do autor baiano.

O longa-metragem foi inteiramente filmadoapp onabetSalvador e arredoresapp onabet1969 e estrelado por jovens atores americanos (Kent Lane, Tisha Sterling, John Rubinstein e o 'Eddie'app onabetA Família Monstro, Butch Patrick) e brasileiros (Guilherme Lamounier, Eliana Pittman). Caymmi, inclusive, fez uma participação menor no filme, interpretando o pescador João Adão, amigoapp onabetPedro Bala, o líder dos meninos.

O longa chegou aos cinemas soviéticosapp onabet1973, antes do livro ser lançado no país. Ou seja, o público estava conhecendo pelo filme, e não pelo livro, a históriaapp onabetPedro Bala eapp onabetturmaapp onabetcrianças e adolescentes vivendo nas ruasapp onabetSalvador dos anos 1930.

Há estimativasapp onabetque esse filme, um fracasso nos EUA e proibido no Brasil pelo regime militar, foi assistido por cercaapp onabet43 milhõesapp onabetpessoas na União Soviética.

Segundo um artigo da pesquisadora brasileira, Marina Darmaros, doutoraapp onabetLiteratura e Cultura Russa pela USP, o filme teve maisapp onabet1,2 mil cópias distribuídas pelo país, onde foi o 34º filme estrangeiro mais assistido na era soviética. O filme deixou marcas profundas, principalmente entre os jovens, como conta a pesquisadora, que morou oito anosapp onabetMoscou.

"Ele ficou superfamoso e a juventude tentava imitar as lutas e os embates corporais que apareciam no filme", diz Darmaros.

"Um pesquisador chamado Serguei Juk, fez uma pesquisa sobre diáriosapp onabetadolescentes numa cidade fechada, Dniepropetrovsk, na Ucrânia, pra saber como vivia a juventude local. Nessa pesquisa, tem menções ao filme. Um oficial aposentado da KGB local,app onabetmaioapp onabet91, afirmava que a juventude ali 'imitava cegamente os modelos antissociaisapp onabetcomportamento dos protagonistasapp onabetseus filmes prediletos, caubóis americanos e jovens delinquentesapp onabetThe Sandpit Generals'."

"E ele menciona também o diárioapp onabetum adolescente, que escreve 'lembroapp onabetcada cenaapp onabetCapitães…, mesmo assim pretendo assistir ao filme pela terceira vez amanhã, para relembrar da música do filme'. O filme ficou extremamente famoso, mas a música do filme ficou mais famosa ainda", acrescenta Darmaros.

Minha jangada vai sair pro mar...

Segundo Joselia Aguiar, quando autorizou a adaptaçãoapp onabetseu livro para a produção do filme americano, Jorge Amado indicou seu grande amigo Dorival Caymmi para compor a trilha sonora. A música (aparecem trechosapp onabetDora e É Doce Morrer no Mar, composta por Caymmi e Jorge Amado) é um elemento crucial no encanto do filme,app onabetparticular a canção-tema, Canção da Partida.

Essa música ficou ainda mais conhecida quando ganhou uma letraapp onabetrusso — feita ainda nos anos 1970 pelo poeta e músico Iúri Tseitlin —, que mais parece um manifesto dos garotosapp onabetruaapp onabetCapitães da Areia. Ou seja, a música não traduz "minha jangada vai sair pro mar", mas traz uma espécieapp onabetliçãoapp onabetmoral da história:

"Minha vida se iniciou nas favelas da cidade/ E não escutei palavras amáveis/ Quando vocês faziam carinhoapp onabetseus filhos/ Eu pedia comida e passava frio/ Ao me ver, não escondam o olhar/ Já que não tenho culpaapp onabetnada, nada/Por que vocês me abandonaram, por quê?", diz o primeiro verso, segundo traduçãoapp onabetMarina Darmaros.

"Os adolescentes cantavam (a música) nos passeios deles…eles passavam o dia inteiro na rua", afirma Darmaros.

"A rua deles eles chamamapp onabetpátios, que são as áreas comuns dos prédios, que não são como os nossos, cercados. O prédio é só um bloco com uma porta. O resto é rua. Essas áreas comuns, que não tem carros passando, eles chamamapp onabetpátios. E uma pessoa que falou do fenômenoapp onabetCapitães da Areia nos pátios russos, foi ninguém menos que o presidente, Vladimir Putin."

"Em umapp onabetseus livros biográficos, Putin escreve: 'Nos primeiros anosapp onabetescola, não me aceitaram entre os 'pioneiros' (um movimento semelhante aos escoteiros, mas que seguia a ideologia soviética). Afinal, criei-me no pátio, onde a autoafirmaçãoapp onabetuma criança se manifestaapp onabetmaneira totalmente diversa. Viver no pátio e criar-se nele é equivalente a viver numa selva. É muito parecido. No pátio, a vida é livre. A vida na rua é,app onabetsi mesma, muito livre. Exatamente como no filme Capitães da Areia. Para a gente era o mesmo. A diferença estava talvez apenas nas condições climáticas. Em Capitães... era mais quente. E lá a garotada se reunia na praia. Masapp onabetresto, o que acontecia com eles e a gente era absolutamente a mesma coisa'."

Joselia Aguiar relatou um caso que ilustra bem a popularidade dessa música entre jovens russos.

"Durante as entrevistas para a biografiaapp onabetJorge Amado, o poeta baiano João Carlos Teixeira Gomes me contou uma história engraçada. O sonho dele era conhecer Odessa, por causa do filme O Encouraçado Potemkin, do Eisenstein. Ele queria sentar na escadaria que ficou famosa pela cena do carrinhoapp onabetbebê que sai desgovernado. E ele estava lá sentadoapp onabetOdessa, deslumbrado, quando ele vê passar um grupoapp onabetalunosapp onabetuma escola, numa espécieapp onabetdesfile, e eles estão cantando 'Minha jangada vai sair pro mar…',app onabetrusso. Ele está todo feliz, vendo aquela cena, e pensa 'acho que estou morrendo'. 'Isso deve ser um derrame'. Ele não achava possível que o Caymmi fosse cantado nas ruasapp onabetOdessa. E assim ele foi entender o quanto essa canção ficou conhecida — por causa do filme."

Rebatizada nos anos 1970app onabetCapitães da Areia, a música passou a ter vida própria, principalmente depoisapp onabetser gravada,app onabet1997, pelo conhecido grupoapp onabetrock Nestchástni Slútchai.

No YouTube há inúmeros clipesapp onabetcantores/as ou instrumentistas russos tocando ou cantando a música.

No ano 2002, ela apareceuapp onabetum famoso e popular seriado russo chamado Brigada. Em uma festaapp onabet casamento, a música é tocada pela banda a pedidoapp onabetum dos presentesapp onabethomenagem ao noivo e a memórias compartilhadas — o que reforça a impressãoapp onabetque a cançãoapp onabetCaymmi, foi, na URSS, uma espécieapp onabetsímbolo da passagem da adolescência para o mundo adulto.

Os livrosapp onabetJorge Amado, o filme Capitães da Areia, a incrível popularidadeapp onabetnovelas brasileiras, como Escrava Isaura, O Clone e Avenida Brasil, fomentaram e fomentam, há anos, o interesse pelo Brasil na Rússia. Esse interesse entretanto, não parece ser mútuo, segundo Victoria Melnikova.

"Não há fascinação com a Rússia no Brasil. Quando estive no Rio, conversei com várias pessoas ali, eu passava essa mensagemapp onabetsermos obcecados pela cultura brasileira. Mas as pessoas não sabiam nada sobre a Rússia. E eu dizia 'como é possível?'"

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