Reflexõescomo apostaruma antropóloga e mãe: 'O que aprendi com índios sobre educação infantil':como apostar

O Parque Indígena do Xingu (PIX) fica no nordeste do Mato Grosso, na porção sul da Amazônia brasileira. Xingu é o nome do rio que atravessa o território, que tem 2.642.003 hectares e onde vivem 16 etnias.
Camila foi ao Xingu para conversar com diretores e professores indígenas que ensinam nas escolas das aldeias visitadas. Enquanto trabalhava, muitas vezes deixava Martim, na época com três anos, brincando com as crianças das tribos.

"Ele ficava com as crianças ou com as famílias das crianças. Me sentia confiante. Por um lado, me perguntava, 'onde será que ele está, o que está fazendo?' Aí pensava: 'bem , está com as crianças, então está seguro'. Não fiquei com receio porque são cuidadosos e dominam aquele território."
Camila teve várias provas disso.
O banho
O episódio da canoa virada no rio foi um entre vários momentoscomo apostarque se deu conta, maravilhada,como apostarque crianças pequenas podem muito mais do que imaginamos.
A relação peculiar com a água é o que permite tanta desenvoltura da criança indígena num ambiente que poderia ser perigoso para as da cidade, explica a antropóloga.
E tudo começa com o banho - algo que ela observou já na primeira aldeia visitada, os Kisêdjê.
"O banho é o momentocomo apostarque a criança se integra com o ambiente da água. Aprende os limites do próprio corpo, desenvolve suas potencialidades, a pesca, a navegação. O ambiente é preparado pela comunidade para esse fim. Deixam o fundo bem limpinho, tiram o mato da beira do rio, você sabe onde pode ir e onde não pode. Colocam uma estrutura feita com um troncocomo apostarmadeira onde você pode sentar a criança, ou lavar roupa".
"Crianças menores ficam na beira; as maiores, mais ao fundo; outros mergulham. É uma experiência do coletivo, das brincadeiras. A criança pequena observa o que é possível fazer e realizar nesse lugar,como apostaracordo com suas capacidades,como apostardiferentes fases. Martim ficou encantado".
Mas e os riscos para as crianças?
"Uma coisa é a gente ter contato esporadicamente (com o rio). Outra coisa é o contato diário, duas, três vezes por dia. Você vai se apropriar daqueles desafios, daquele ambiente. Há pouco espaço para perigo".
Meninos caçadores
Na visita aos Kisêdjê, outros episódios chamaram a atenção da antropóloga.
Uma tarde, Martim convidou um grupocomo apostarcrianças da aldeia para visitar a casa do ISA, onde ele e a mãe estavam hospedados.

"Os meninos foram com seus estilingues", conta Camila. "Aí viram que tinha morceguinho na casa e decidiram caçá-los com o estilingue. Foi a primeira experiência do Martimcomo apostarver o bichinho,como apostarver a habilidade do caçador, desenvolvida desde pequenininho. Deviam ter cinco ou seis anos e conseguiram caçar o morcego."
Birra
Em outra ocasião, na saída do banho, Camila observou um jeito diferentecomo apostaros pais lidarem com birracomo apostarcriança.
"Não sei por que motivo, uma criança começou a chorar muito. Os pais estavam saindo do rio, talvez ele quisesse ficar mais tempo na água… Os pais simplesmente saíram andando. A criança foi atrás, chorando".
"Não tem essa bajulação,como apostarficarcomo apostarcima, 'o que foi, o que aconteceu? Se você pararcomo apostarchorar, te dou isso…' Tomaram a atitudecomo apostarnão alimentar a birra. Essa é uma observação muito pessoal, mas acho que o princípio é, quanto menos bola se dá para a birra, mais a criança tem condiçõescomo apostarresolver suas próprias frustrações."
Amamentação
Por outro lado, diz a antropóloga, não falta atenção às crianças nas aldeias.
As mães têm total disponibilidade para estar com as crianças. Enquanto são bebês, a mãe não sai para trabalhar na roça. "A família faz esse trabalho por ela", diz Camila. "Às vezes, até o marido tem restrições para ir à roça quando tem bebê pequeno."
Mais tarde, se a mãe vai à roça, tem a ajuda dos parentes. "A criança pequena fica com a tia ou avó."
Ou seja, não há a angústia ou a culpa da separação que aflige tantas mães trabalhadoras nas cidades. Também não há a preocupação com a amamentação - ou com o desmame:
"Já vi criançacomo apostartrês anos sendo amamentada. Lá é livre demanda, quer mamar, mama. Na mãe, na tia, na avó… às vezes, a mãe saiu mas a avó está ali e tem leite. Ela dá. É normal."

A criança tem atenção constante, mas também tem liberdade - se quiser.
"Quando a mãe vai para a roça, a criança, já mais velha, vai com ela. Mas quando a mãe estácomo apostarcasa, na aldeia, as crianças estão no pátio, indo atráscomo apostarpassarinho,como apostarbichinho, brincando".
"A partircomo apostartrês anos, já são bem mais independentescomo apostarrelação à mãe (do que as da cidade). Elas têm circulação livre na aldeia, mas nunca estão sozinhas. Estão sempre acompanhadascomo apostarcrianças do mesmo tamanho ou maiores."
"Na nossa sociedade você não tem esse apoio coletivo que existe no convíviocomo apostaraldeia. Não partilhamos a educaçãocomo apostarnossos filhos com a comunidade."
'Beiju e peixe'
Muitos povos indígenas no Brasil hoje incorporam alimentos do homem brancocomo apostarsuas dietas. Comem arroz, feijão, açúcar e farinha. Mas mantêm lavouras tradicionais, como a da mandioca, e praticam a caça, a pesca e a coleta.
Hoje com cinco anoscomo apostaridade, Martim ainda se lembra das delícias que comeu no Xingu. Questionado pela BBC Brasil sobre o que mais gostoucomo apostarcomer na viagem, ele responde:
"Beiju e peixe. É gostoso", diz. "Um dia a gente vai voltar lá. É muito gostoso e um dia eu quero voltar lá."
Beiju é uma tapioca grande que os índios comem com peixe assado, explica Camila. Na aldeia todos comem juntos. As crianças comem o que tem. E desde cedo aprendem a coletar frutos da época. Também acompanham o adultos na caça e pesca.
"Desde cedo, aprendem a pegar seu peixinho."
Preguiça e brigas
De volta à cidade, Camila diz que se esforça para manter a cultura indígena viva na imaginação do filho.
"Um dia desses, o Martim estava com preguiçacomo apostaracordar para ir à escola. Então, contei uma história para ele", diz a antropóloga.
"Tem um povo que mora numa aldeia. De manhã, quando esse povo acorda,como apostargeral é muito frio porque o sol ainda não nasceu."
"Geralmente, as crianças também ficam com preguiça. Mas os mais velhos dizem que quem levanta cedo para tomar banho no rio fica saudável, forte e corajoso. Contei para ele como uma motivação. No final, expliquei que esse é o povo Xavante."
E para ensinar Martim a não brigar por besteira, Camila planeja levá-lo à terra Xavante para que ele participecomo apostarum ritual especial:
"Na aldeia Xavante, quando as crianças ficam brigando sem motivo, os mais velhos decidemcomo apostarconselho que é horacomo apostarorganizar o ritual Oi´Ó. Os índios tiram uma raiz da terra que funciona como instrumentocomo apostarluta. Tem uma regra para se lutar: você (só pode) acertar seu companheirocomo apostarluta do ombro para baixo. A ideia é que as crianças aprendam o que é brigarcomo apostarverdade, sentir dorcomo apostarverdade. Lutamcomo apostarduplas, umcomo apostarcada clã (há dois clãs no povo Xavante), enfeitados e pintados, e a aldeia inteira assiste."
O povo Xavante é um povo guerreiro, daí o ritual, explica Camila. Ela não vê, no entanto, riscos para Martim.
"Fazem isso desde pequenos, desde os dois aninhoscomo apostaridade até 14, 15. As duplas são escolhidascomo apostaracordo com o tamanho, têm o mesmo biotipo. E essa raiz é forte, mas não vai cortar ou furar. Vai ser importante para o Martim", diz.
Lições
As histórias sugerem, por exemplo, que a criança a partir dos três anoscomo apostaridade pode ganhar mais autonomia do que costuma ter na nossa sociedade.
Ela diz, no entanto, que não vê sentidocomo apostartentarmos transpor,como apostarforma literal, para a nossa cultura, o modelo oferecido pelos povos indígenas.
São sistemas diferentes que respondem a contextos diferentes, explica.
Para quem deseja aprender com o índio, "o pontocomo apostarpartida é a integraçãocomo apostarum povo indígena com o ambientecomo apostarque vive". Isso significa integrarmos nossas crianças com o ambiente delas: "O quintalcomo apostarcasa, a terra, as plantas, os parques, as praças, a rua, a comunidade".
"Você não precisa estar numa aldeia indígena para ter uma relação integrada com o seu meio. Pode desligar aparelhos celulares e tablets, ampliar a observação, a escuta, as possibilidades quecomo apostarprópria realidade traz (para a criança)."
Martim passou 20 diascomo apostarconvívio intenso com modoscomo apostarvida tão diferentes dos dele. O que terá ficado, dessa experiência, para um menino tão pequeno?
"Como foi pouco tempo, o aprendizado foi ampliar a percepção da realidade. A relação com a diferença amplia o conceitocomo apostarmundo. Você descobre que não há uma verdade absoluta, há muitas maneirascomo apostarse ser ecomo apostarse estar no mundo - e essa é nossa maior riqueza."