Brasil viveu um processosite oficial da blazeamnésia nacional sobre a escravidão, diz historiadora:site oficial da blaze

  • Júlia Dias Carneiro
  • Da BBC Brasil no Riosite oficial da blazeJaneiro
Senhor e seus escravos, São Paulo, albúmensite oficial da blazeMilitão Augustosite oficial da blazeAzevedo, c. 1860. 6,3 x 8,3 cm. Museu Paulista — USP

Crédito, Museu Paulista/USP

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'O Brasil foi o ultimo país do Ocidente a abolir a escravidão. Às vezes as pessoas falam que foi o último das Américas, mas não. De fato, era chamado na épocasite oficial da blazeretardão', diz Schwarcz

site oficial da blaze Sancionada pela princesa Isabel no dia 13site oficial da blazemaiosite oficial da blaze1888, a lei que aboliu a escravidão após maissite oficial da blazetrês séculossite oficial da blazetrabalho forçado no Brasil "saiu muito curta, muito pequena, muito conservadora", descreve Lilia Moritz Schwarcz.

Em entrevista à BBC Brasil, a historiadora diz que as consequências dessa viradasite oficial da blazepágina abrupta, sem políticas para incluir os ex-escravos à sociedade, são sofridas até hoje.

"O que vemos hoje no país é uma recriação, uma reconstrução do racismo estrutural. Nós não somos só vítimas do passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas radicalizar o racismo estrutural", considera Schwarcz, professora do Departamentosite oficial da blazeAntropologia da USP e autora, entre outros livros,site oficial da blazeO Espetáculo das Raças, As Barbas do Imperador, Racismo no Brasil e Brasil: uma biografia.

Reprodução do documento da Lei Áurea

Crédito, Reprodução

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Para historiadora, Lei Áurea 'saiu muito curtinha, muito pequena, muito conservadora'

Como parte dos eventos para marcar os 130 anos da abolição, Schwarcz lança nesta sexta-feira (11/05) o Dicionário da Escravidão e Liberdade - 50 textos críticos (Companhia das Letras),site oficial da blazecoautoria com o historiador Flávio dos Santos Gomes. Schwarcz é também cocuradora da exposição Histórias Afro-Atlânticas, que será aberta no Masp e no Instituto Tomie Ohtake,site oficial da blazeSão Paulo, no fimsite oficial da blazejunho.

"Estamos politizando essa data e deixando bem claro que é preciso lembrar para não esquecer. Mas não é possível celebrar", afirma.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Lilia Moritz Schwarcz

Crédito, Renato Parada/Divulgação

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Lilia Moritz Schwarcz é professora do departamentosite oficial da blazeAntropologia da Faculdadesite oficial da blazeFilosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

site oficial da blaze BBC Brasil - Nasite oficial da blazevisão, nesses 130 anos desde a abolição, no que o país avançou e no que está parado?

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site oficial da blaze Lilia Schwarcz - Não há motivo algum para celebrar. O Brasil foi o ultimo país do Ocidente a abolir a escravidão. Às vezes as pessoas falam que foi o último das Américas, mas não. De fato, era chamado na épocasite oficial da blaze'retardão'. Tardou demais. As estatísticas oscilam, mas indicam que o país teria recebido entre 38% a 44% da quantidade absolutasite oficial da blazeafricanos obrigados a deixar o continente. E teve escravossite oficial da blazetodo o seu território, diferente dos EUA, por exemplo, que no Sul tinha um modelo semelhante ao nosso, mas no norte tinha outro modelo econômico.

Quando veio a Lei Áurea,site oficial da blaze1888, ela saiu muito curtinha, muito pequena, muito conservadora. "Não há mais escravos no Brasil, revogam-se as posiçõessite oficial da blazecontrário". Corria no plenário uma sériesite oficial da blazepropostas, algumas ainda mais conservadoras, outras mais progressistas.

site oficial da blaze BBC Brasil - Como esses grupos mais conservadores reagiram à abolição?

site oficial da blaze Lilia Schwarcz - A queda imediata do Império (é resultado da reação desses grupos). A Lei Áurea foi a lei mais popular do Império e a última. Como não se previram indenizações, os grandes produtoressite oficial da blazecafé, até então vinculados ao Império, se bandearam para as fileiras dos republicanos.

A abolição foi um processosite oficial da blazeluta da sociedade brasileira. Não foi uma lei. Não foi um presente da princesa (Isabel), como romanticamente se diz. Muitos setoressite oficial da blazeclasse média esite oficial da blazeprofissionais liberais aderiram à causa abolicionista, que vira suprapartidária na décadasite oficial da blaze1880. É importante destacar sobretudo a atuação dos escravizados, dos negros, dos libertos, que pressionaram muito o tempo todo, seja por insurreições, seja por rebeliões coletivas, rebeliões individuais, suicídios, envenenamentos.

O que o Estado fez foi retardar a Lei Áurea a um tal limite que ela acabou custando a própria vida do Império no Brasil. Um ano e meio após a abolição da escravidão, o Império acabou.

Mercado da rua do Valongo, litografia a partirsite oficial da blazeaquarelasite oficial da blazeJean-Baptiste Debret, 1835. 17,5 x 25,5 cm. Biblioteca Públicasite oficial da blazeNova York

Crédito, Biblioteca Públicasite oficial da blazeNova York

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Mercado da rua do Valongo, litografia a partirsite oficial da blazeaquarelasite oficial da blazeJean-Baptiste Debret, 1835

site oficial da blaze BBC Brasil - Qual foi o simbolismo da lei no momentosite oficial da blazeque foi assinada?

site oficial da blaze Lilia Schwarcz - A assinatura do documento foi um ritual caprichadíssimo. Para se ter uma ideia, foram criados tipos novos para a composição da Lei Áurea. O pai do (escritor) Lima Barreto, João Henriques, participousite oficial da blazeum gruposite oficial da blazetipógrafos que estavam emocionados com a lei, e compuseram tipos novos para o documento, assinado pela princesa com uma caneta valiosíssima. Todo o ritual teve muito apelo popular. A famosa foto da época (de uma multidão reunida do ladosite oficial da blazefora do Paço Imperial, no Centro do Rio, para a assinatura da lei), mostra que a população compareceu, e é possível reconhecer bandeirassite oficial da blazeirmandades negras que foram comemorar a abolição.

O ritual tinha tudo para encantar, e encantou. Tanto que mais tarde vimos a população liberta conformar a Guarda Negra, que era contra a República e a favor do Império. Hoje, muita gente pode achar isso uma grande contradição. Não é. Na época, a compreensão era que o Império tinha garantido o final da escravidão, e ninguém sabia o que viria com a República. Havia muito medosite oficial da blazeprojetossite oficial da blazereescravização. Estava tudo muito instável, nebuloso.

Hoje, sabemos que o ritual era parte da estratégiasite oficial da blazedom Pedro 2º, que não estava no país, para garantir o Terceiro Reinado nas mãossite oficial da blazeIsabel. A ideia era que a lei tornaria Isabel tão popular que impediria os projetos republicanos e garantiria a sucessão e manutenção do regime monárquico. O que não aconteceu. Mas o ritual foi realizado com grande pompa e circunstância, com o objetivosite oficial da blazefazer emocionar, esite oficial da blazefato emocionou.

site oficial da blaze BBC Brasil - Quais eram os principais vícios da lei?

site oficial da blaze Lilia Schwarcz - A lei simplesmente abolia. Dizia que a partir desta data não há mais escravos no Brasil. Ponto final.

A República, que viria um ano e meio depois, tentaria colocar uma pedra no tema da escravidão. Como se tivesse ficado morto no passado junto com o Império. Temos um hino da República, aquele que canta "liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós". E há uma estrofe que diz: "Nós nem cremos que escravos outrora tenha havidosite oficial da blazetão nobre país". Ou seja, um ano e meio depois, (os republicanos) afirmavam não acreditar mais (que tivesse havido escravidão). Era um processosite oficial da blazeamnésia nacional.

Cartões-postais, fotografiasite oficial da blazeRodolpho Lindemann, s. d. Fundação Gregóriosite oficial da blazeMattos.

Crédito, Fundação Gregóriosite oficial da blazeMattos

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Vendedorasite oficial da blazebananassite oficial da blazefotografiasite oficial da blazeRodolpho Lindemann

site oficial da blaze BBC Brasil - Quais foram as consequências imediatas desta abolição sem salvaguardas?

site oficial da blaze Lilia Schwarcz - O (momento) pós-emancipação não teve nenhuma preocupação com inclusão dessas populações (de ex-escravos). Eu me refiro a educação, saúde, habitação, todos os problemas estruturais.

Mas isso não quer dizer que a gente só deva culpar o passado. O que vemos hoje no país é uma recriação, uma reconstrução do racismo estrutural. Nós não somos só vítimas do passado. O que nós temos feito nesses 130 anos é não apenas dar continuidade, mas radicalizar o racismo estrutural.

site oficial da blaze BBC Brasil - As gerações pós-Holocausto viveram o choque com a barbaridade e os horrores da Alemanha nazista. Você acha que no Brasil pós-escravidão houve um sensosite oficial da blazechoque posterior, uma percepçãosite oficial da blazeque o país perpetrou barbaridades?

site oficial da blaze Lilia Schwarcz - Aqui no Brasil, não. Você teve essa percepçãosite oficial da blazeoutros lugares. E existem alguns memoriais espalhados pelo mundo que falam do que foi a escravidão, como o memorial da aboliçãosite oficial da blazeNantes, na França.

No Brasil, qual foi o suposto? Que a escravidão era a lei. Era legal. E durante muito tempo foi naturalizada. A ideia da naturalização é terrível. Sempre se mostrou uma escravidão muito benéfica. Basta vermos as imagens que passam a ideiasite oficial da blazeuma escravidão ordeira, tranquila. Como se isso fosse possível,site oficial da blazeum sistema que pressupõe a possesite oficial da blazeum homem por outro.

Só muito recentemente é que foi se colocandosite oficial da blazepauta a dimensão da chacina, e o fatosite oficial da blazea escravidão mercantil da era moderna ter produzido a maior diáspora vista no mundo depoissite oficial da blazeRoma.

Augusto Gomes Leal comsite oficial da blazeamasite oficial da blazeleite Mônica, albúmensite oficial da blazeJoão Ferreira Villela,site oficial da blaze1860

Crédito, Acervo Fundação Joaquim Nabuco/ Min. da Educação

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Augusto Gomes Leal comsite oficial da blazeamasite oficial da blazeleite Mônica, albúmensite oficial da blazeJoão Ferreira Villela,site oficial da blaze1860

Até o movimento negro contestar a datasite oficial da blaze13site oficial da blazemaio, a data era uma data cívica. Era celebrada. Era despolitizada. Atualmente, estamos politizando essa data e deixando bem claro que é preciso lembrar para não esquecer. Mas não é possível celebrar.

site oficial da blaze BBC Brasil - Ganha força um movimentosite oficial da blazecobrança por essa dívida histórica?

site oficial da blaze Lilia Schwarcz - Eu penso que sim. O movimento internacional por cotas e políticassite oficial da blazeação afirmativa é uma tentativasite oficial da blazecobrar essa dívida histórica. Essa discussão começa no Brasil tarde, no fim dos anos 1970, e demora para pegar.

Os dados do censo vêm mostrando como o país é profundamente desigual. Quando comparamos marcadores sociais da diferença, como classe e raça, vemos que raça é sempre um agravante.

Estamos matando uma geraçãosite oficial da blazenegros e negras no Brasil. Sabemos que os negros têm menos acesso a educação. Têm menos acesso a saúde. Têm menos acesso a transporte. Morrem antes. São dados radicais que estamos recriando. Eu acho que ações desse tipo (as cotas raciais) são importantes porque há momentossite oficial da blazeque é preciso desigualar para depois igualar. Não se pode falarsite oficial da blazeuma meritocracia universal num país tão desigual como o Brasil.

site oficial da blaze BBC Brasil - A eleição da Marielle Franco no Rio foi um exemplo da força que movimentossite oficial da blazeprol da igualdade racial esite oficial da blazegênero vêm ganhando. Como você compara a força desses movimentos hoje com o que acontecia nasite oficial da blazejuventude?

site oficial da blaze Lilia Schwarcz - A minha geração viu o crescimento dos direitos civis, do direito à diferença na universalidade, e se orgulhou muito dessas novas conquistas. Acho que, no Brasil e no mundo, nós acreditamos que essas conquistas democráticas estavamsite oficial da blazealguma maneira asseguradas.

O que estamos vendo agora é um momento clarosite oficial da blazecrise e recessão democrática, colocandosite oficial da blazerisco essas conquistas.

A morte da Marielle representa muito esse momento. Depoissite oficial da blaze30 anossite oficial da blazeconquistas democráticas, começamos a ver que direitos não são conquistados para sempre.

É absolutamente simbólico quesite oficial da blazemorte tenha ocorrido bem no ano dos 130 anos da abolição. A Marielle usou das franjas do sistema. Ela se formou na Maré, entrou na PUC por políticasite oficial da blazecotas, fez valer o seu mérito, virou uma das vereadoras mais votadas no Rio porsite oficial da blazepautasite oficial da blazeinclusão racial esite oficial da blazegênero. Sua morte ainda sem respostas é outro escândalo da nossa democracia.

[Damasite oficial da blazeliteira, carregada por escravos, e suas acompanhantes], aquarelasite oficial da blazeCarlos Julião, último quarto do século 18. 35 x 45,5 cm. Fundação Biblioteca Nacional.

Crédito, Fundação Biblioteca Nacional

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Damasite oficial da blazeliteira, carregada por escravos, e suas acompanhantessite oficial da blazeaquarelasite oficial da blazeCarlos Julião do último quarto do século 18

site oficial da blaze BBC Brasil - No livro site oficial da blaze Brasil: Uma Biografia site oficial da blaze , você e a historiadora Heloisa Starling dizem que o país é uma obra aindasite oficial da blazeaberto, e questionam se conseguiria consolidar a república e a democracia. Recentemente, a perspectiva ficou mais pessimista?

site oficial da blaze Lilia Schwarcz - Quando terminamos o livro, estávamos encantadas, Heloisa e eu, com as passeatassite oficial da blaze2013, com as manifestações, com a ideiasite oficial da blazeum Brasil mais plural, mais vigilante. Acho que todos ficamos. O que não notamos era que existiam dois grupos que desfilavam na avenida (nos protestossite oficial da blaze2013). Sabíamos, mas depois ficou mais claro. Um que queria esse Brasil diferente, mais plural, mais inclusivo, mais variado; e outro que também queria um Brasil diferente, mas que,site oficial da blazealguma maneira, estava colocando tudo na contasite oficial da blazeDilma Rousseff esite oficial da blazeum partido. Um Brasil que queria não pluralidade, massite oficial da blazefato eliminar o adversário.

Ideologias políticas à parte, acho que o impeachment da presidente Dilma abriu a tampa da democracia no Brasil e deu lugar para a políticasite oficial da blazeódios,site oficial da blazeintolerância. A temperatura política acabou derretendo as nossas instituições. Quando escrevemos Brasil: Uma Biografia, Heloisa e eu dizíamos que a democracia estava forte porque as instituições estavam consolidadas, mas a república ia muito mal. Agora vemos que tanto a república como a democracia vão muito mal, com as instituições muito enfraquecidas e o descrédito da política e dos partidos. Vivemos um momento que pede muita vigilância.

site oficial da blaze BBC Brasil - Nessa atual conjuntura, como você vê o cenário para as eleições deste ano?

site oficial da blaze Lilia Schwarcz - Quem diz que sabe, mente. Não vejo nenhum sinal agora que permita comentar como vai ser a composição dos partidos, quem vai se apresentarsite oficial da blazefato. Há muitos sinais para ficarsite oficial da blazealerta. É preciso aguardar.

Negra tatuada vendendo cajus, aquarela sobre papelsite oficial da blazeJean-Baptiste Debret, 1827. 15,7 x 21,6 cm. Museus Castro Maya/ Ibram/MinC

Crédito, Museus Castro Maya/ Ibram/MinC

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Negra tatuada vendendo cajussite oficial da blazeaquarela sobre papelsite oficial da blazeJean-Baptiste Debret