'Quantos morreram? Tantos quanto foram necessários', diz coronel sobre ditadura:bete esport
- Júlia Dias Carneiro
- Da BBC Brasil, no Riobete esportJaneiro

Crédito, Julia Carneiro
Em depoimentobete esportmaisbete esportduas horas, Paulo Malhães admitiu que torturou, matou e ocultou cadáveres
bete esport Foi só quando o carro embicou no pátio do Arquivo Nacional, no Centro do Rio, e o corre-corre da imprensa se amontoando ao seu redor começou – "Chegou!" – que as dúvidas sobre se o coronel reformado Paulo Malhãesbete esportfato apareceria se dissiparam.
Aos 76 anos, Malhães foi carregado do carro para a cadeirabete esportrodas que havia solicitado para comparecer à audiência pública da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cercadobete esportfotógrafos e cinegrafistas.
O ex-agente do Centrobete esportInformações do Exército (CIE) chegou acompanhado da esposa, vestindo um terno bege e um óculos escurosbete esportaro dourado – que fez um repórter ao meu lado comentar que parecia o ex-ditador líbio Muammar Khadafi.
Outra repórter arriscou puxar uma entrevista – "Você não se arrepende?" – gritou, mas a cadeirabete esportrodas era empurrada às pressas para a salabete esportdepoimento, que seria fechada à imprensa. Malhães nem olhou para trás.
Desde que a CNV foi criada,bete esportmaiobete esport2012, apenas quatro agentes da ditadura haviam aparecido nas convocações para deporbete esportaudiência pública, e apenas dois haviam confirmado a prática, ou a existência,bete esporttortura.
Malhães se tornou o quinto a depor e o primeiro a admitir a participaçãobete esporttantos crimes.
Em depoimento que durou maisbete esportduas horas, ele confirmou que torturou, matou e ocultou cadáveresbete esportpresos políticos na ditadura militar.
Casa da Morte
Na audiência pública, a CNV apresentou o que se sabe sobre a Casa da Mortebete esportPetrópolis, um centro clandestino mantido pelo regime militar no início da décadabete esport1970.
Malhães era um dos agentes ativos no centrobete esporttortura – cujo nome vem da famabete esportque ninguém saía dali vivo. A única sobrevivente é Inês Etienne Romeu, presa e torturada por seis mesesbete esport1971.
Foi graças àbete esportmemória e perseverança que a existência da casa veio à tona,bete esport1981. Ela tem graves sequelas neurológicas desde que foi agredidabete esportcasabete esport2003,bete esportum crime que nunca se esclareceu. Foi aplaudida como uma heroína na audiência na parte da manhã.
De tarde o público se dissipara. O coronel concordarabete esportdepor, desde que fosse a portas fechadas. Mas logo no início da sessão, surpreendeu a todos mudandobete esportideia e admitindo a entrada da imprensa. A primeira frase que ouvi ao entrar foi: "Como faço com tudo na vida, eu dei o melhorbete esportmim naquela função."
Contou ter estudado documentos dos serviços secretos britânico, americano e israelense no início da carreira. Hoje, diz ser um estudiosobete esportorquídeas. "Cheguei a fazer tortura quando comecei. Depois, evoluí", disse a princípio. Deu a entender que evolução fora passar à tortura psicológica.
Ele tirara os óculos escuros e agora parecia apenas um senhor apagadobete esport76 anos, os cabelos escovados para trás, a barba grisalha, os ombros tronchos meio caídos para a frente.
A CNV apostara na vindabete esportMalhães porque nas últimas semanas ele mostrara uma súbita abertura a entrevistas.
Ele fez revelações com riquezabete esportdetalhes aos jornais O Globo e O Dia e à Comissão Estadual da Verdade no Rio. Disse que foi ele quem deu uma solução final ao corpo do deputado Rubens Paiva, desenterrando-obete esportuma praia do Rio para lançá-lo no mar, oubete esportum rio – ele deixavabete esportaberto.
Mas no depoimento à CNV, desmentiu a "verdade" que recém-revelara sobre Rubens Paiva – e confirmou muitas outras.
Malhães não quis dar nomes a seus comparsas nem números a suas vítimas.
Mas disse ter torturado "uma quantidade razoável"bete esportpessoas, ter matado “alguns” e confirmou ter mutilado corpos para impedirbete esportidentificação caso fossem encontrados.

Crédito, Julia Carneiro
'Eu cumpri meu dever. Não me arrependo', disse Malhães à Comissão da Verdade
"Naquela época não existia DNA. Quais são as partes que podem identificar um corpo? Arcada dentária e digitais", afirmou, explicando que portanto os dentes eram quebrados e o topo dos dedos, cortados.
"Eu cumpri o meu dever. Não me arrependo", disse ele.
Malhães agora ocupava a cadeira do interrogado, microfones dispostos àbete esportfrente, e do outro lado da mesa estavam os membros da CNV, com José Carlos Dias e Rosa Cardoso conduzindo as perguntas. Sua esposa estava na cabeceira da mesa, e sem mexer a cabeça alternava o olhar entre o marido e seus interrogadores.
Eles lhe mostraram fotosbete esportpessoas que, acredita-se, foram assassinados ou desapareceram depoisbete esportpassar pela Casa da Morte. O coronel alegou não reconhecer as fotos. Disse que nenhuma daquelas pessoas passou por suas mãos.
"Essas pessoas que vocês estão citando eram guerrilheiros, eram luta armada, não eram pessoas normais. Não foram presos porque jogavam bolinhabete esportgude ou soltavam pipa."
Argumentou que hoje as pessoas não conseguem entender quais eram os problemas enfrentados, e que a verdade precisa ser "informada".
"Quantos morreram? Tantos quanto foram necessários."
'Não sou sentimental'
Dias e Cardoso faziam uma pergunta atrás da outra, muitas vezes cortando suas respostas pela metade. Malhães esboçou alguma impaciência mas permaneceu calmo, sempre tratando-nos por "senhores".
Guerrilheiras mulheres, ele disse que via como se fossem homens. Mas "eu tinha verdadeiro pavorbete esportinterrogar as mulheres e, vamos dizer, gays, para não usar a palavra que se usava naquele tempo."
Isso porque mulheres ou homossexuais, segundo o coronel, preferiam morrer a revelar os nomes dos amantes ou maridos. Já os homens falariam depoisbete esportduas ou três horas. "Você 'ganhar' uma mulher é uma coisa, assim,bete esportoutro mundo", disse, sem precisar a que métodobete esportinterrogatório se referia.
E Rubens Paiva? Perguntado novamente sobre a operação para encontrar a cova do deputado e sumir com seu corpo, notícia que teve ampla repercussão na semana passada, Malhães agora disse não ter sido ele quem executou a missão, embora tenha recebido a tarefa inicialmente.
"Eu só disse que fui eu porque eu acho uma história muito triste quando a família passa 38 anos querendo saber o paradeiro. Eu não sou sentimental, não. Mas tenho as minhas crises."
A versão a jornalistas teria sido dada "para pôr um ponto final na história".
Mas no depoimento ficou claro o incômodobete esportMalhães com a repercussão das matérias do Globo e do Dia, ambas baseadasbete esportlongas entrevistas que deubete esportmaisbete esportum dia a repórteres dos dois veículos.
"O defeito do jornalista é que eles são ávidos por novidades. Se ligassem os fatos não publicariam algo errado", criticou, dizendo ter sido vítimabete esportreportagens "fundamentalmente maliciosas", disse.
Por isso, estaria agora procurando falarbete esportformabete esportparábolas – "como fazia Cristo" – para que cada um pudesse interpretar suas palavras dabete esportforma.
Culpa
Ao fim do depoimento, depoisbete esportconfirmar seus crimes, Malhães foi empurrado na cadeirabete esportrodasbete esportvolta para o carro,bete esportvolta para a rua,bete esportvolta para casa.
Mas deixou entrever o calvário pelo qualbete esportfamília começa a passar após ter começado a tornar públicos seus crimes.
Quando Dias insistiu para que falasse sobre os corpos que descaracterizava, ele se negou a informar quem ele havia "feito". Disse não ter medobete esportvingança, masbete esportsanções aos seus filhos.
"Seus filhos não têm culpa do pai que têm", disse Dias.
"É. Também concordo. Mas isso não é verdade. Eu tenho cinco filhos e oito netos. Com essas reportagens que saíram, eles estão sofrendo sanções".
"Mas sofreriam mais se soubessem – 'meu pai cortou os dedos e cortou o pescoçobete esportfulanobete esporttal’, ou entãobete esportuma pessoa cujo nome eles não sabem? Que diferença faz?", insistiu Dias.
"Muita. Essa pessoa também tem família."
Ao fim da sessão, não foram permitidas perguntas à imprensa. Os jornalistas recolheram os microfones da mesa e alguém pegou uma caneta, perguntando se Malhães a havia usado. Na dúvida, passou um paninho. "Tenho nojo desse cara."
Dias ressaltou a importância do depoimento, principalmente por Malhães ter sido uma figurabete esportalto escalão no regime militar.
"Acima dele, todos os degraus naturalmente tinham conhecimento da tortura. Era uma políticabete esportestado, usada para combater os que se opunham ao regime."
Segundo Dias, poucas vezes o Brasil teve uma confissão como esta, com um torturador não apenas admitindo mas também justificando a práticabete esporttorturar aqueles que considerava o inimigo.
"Mas eu não diria que ele foi corajoso. Acho até que ele foi um exibicionista, mostrando todo esse caráter mórbido que está presente no caráter dele."




