Como um gibi pornô reduziu o índicebetano bonus 300HIV entre detentos do Carandiru:betano bonus 300
- Daniel Salomão Roque
- De São Paulo para a BBC News Brasil
betano bonus 300 Sobre um piano vermelho-escuro, entre telas a óleo e velhas fotografiasbetano bonus 300preto e branco, repousa um crachá com desenhosbetano bonus 300Keith Haring. As linhas grossas, formando silhuetas estilizadas, obedecem à mesma estética difundida pelo grafiteiro nas ruasbetano bonus 300Nova Iorque, embora a inscrição nomeie um cenário europeu: os camarins do Festivalbetano bonus 300Jazzbetano bonus 300Montreux, na Suíça.
"Cada músico ganhava um desses", explica Paulo Garfunkel, rodeado por seis cachorros, dois gatos e uma tartaruga embetano bonus 300casa na Vila Madalena, zona oeste da capital paulista. "Toquei com o Ney Matogrosso na ediçãobetano bonus 3001983".
Garfunkel, vulgo Magrão, é um ogã alabê — filhobetano bonus 300santo que cuida dos tambores num terreirobetano bonus 300candomblé. Ele venera quadrinhos franco-belgas e credita aos personagens Asterix e Lucky Luke um papel crucial embetano bonus 300alfabetização. Por partebetano bonus 300mãe, é netobetano bonus 300imigrantes russos e italianos. O avô paterno, vindo da região metropolitanabetano bonus 300Paris, radicou-se como pintorbetano bonus 300Curitiba.
"Uma baita mistura", diz. "Eu e meu irmão nascemos assim, mestiços e enferrujados, os únicos ruivos da família. No primário, estudávamosbetano bonus 300gravata, mas depois que nosso pai morreu, degringolamosbetano bonus 300grana. Aí, a gente se enveredou pela música e perdeu o ranço burguês. Esse é um caminho sem volta".
No início dos anos 1970, Garfunkel estudou flauta no Centro Livrebetano bonus 300Aprendizagem Musical, fundado por integrantes da banda Zimbo Trio. Junto ao irmão, Jean, participariabetano bonus 300inúmeros festivais até o início da década seguinte: "A gente era caça-prêmio", admite. "Muitas vezes, chegávamos nas cidades sem nada no bolso, tentando faturar uns trocados com músicasbetano bonus 300maior apelo".
A situação melhoraria com um telefonema, recebidobetano bonus 3001979. No outro lado da linha, encontrava-se o arranjador César Camargo Mariano, buscando jovens músicos para os próximos showsbetano bonus 300sua esposa, Elis Regina. "Pensei que fosse um engano", lembra. "Logo eu, tocando com a Elis?".
A turnê resultou num disco duplo, o clássico Saudade do Brasil. Calcanharbetano bonus 300Aquiles, um dos tantos sambas que Garfunkel havia escrito com o irmão, foi gravado no álbum Elis,betano bonus 3001980 — o último que a cantora lançoubetano bonus 300vida. Posteriormente, os caminhos do instrumentista se cruzariam com osbetano bonus 300Rita Lee, Johnny Alf e Jackson do Pandeiro, entre outros medalhões da MPB.
"Mas não trabalhei apenas com grandes compositores e intérpretes", observa. "Músicos são operários, quase nunca podem se dar ao luxobetano bonus 300recusar um convite. Estivebetano bonus 300carretasbetano bonus 300caminhão, feirasbetano bonus 300gado, prostíbulosbetano bonus 300quinta e num montebetano bonus 300evento cafoninha".
Macunaíma sem preguiça
Em 1989, Garfunkel tocava sax numa famosa boate do Itaim Bibi: "Era aquele típico lugar metido a besta, com executivos xavecando secretárias bilíngues", descreve. "Quando caía a madrugada, os policiais da ronda noturna se sentiam mais à vontade para cheirar cocaína no balcão".
Garfunkel subia aos palcos à uma da manhã, revezando-se com outros músicos até as cinco — o repertório,betano bonus 300suas palavras, era "meio soul, meio pop, tipo Stevie Wonder". Nos intervalos, costumava bater papo com o porteiro da casa noturna — um "negro forte, grisalho, transbordando altivez". E foi então que o passado daquele homem se descortinou.
O velho funcionário contava histórias mirabolantes sobre Hitler, as Olimpíadasbetano bonus 300Berlim, a experiênciabetano bonus 300subir no ringue dos nazistas e as supostas medalhas que teria disputadobetano bonus 300nome do Brasil. Chamava-se Luiz Campos Soares, mas nos anos 1930 fora conhecido pela alcunhabetano bonus 300Gaúcho. Era um ex-boxeador, vice-campeão sul-americano na categoria dos meio-pesados. O Jornal dos Sports referia-se a ele como a "personificação da delicadeza e disciplina"; um cronista do Sport Ilustrado o descrevia como "destemido e possuidorbetano bonus 300um golpe potente".
Ainda sob o impactobetano bonus 300tais narrativas, Garfunkel viu um colega assumir a paternidadebetano bonus 300uma criança. Ele relembra: "A mãe tinha dado para vários caras do bairro, mas o menino nasceu com a fuça idêntica à desse tecladista. Ninguém fazia testebetano bonus 300DNA naquela época, saca? Então fiquei pensando que loucura não seria, se o bebê herdasse características físicasbetano bonus 300todos os pais".
Garfunkel concluiu que o brasileiro, mesmo quando se enxerga como branco, nada mais é do que um cão sem raça. Diante dessa realidade, imaginou um herói boêmio, multiétnico, filhobetano bonus 300vários homens e uma única mulher. Um Macunaíma nada preguiçoso, com pele escura, físicobetano bonus 300pugilista, infinita disposição para o sexo e trejeitosbetano bonus 300samurai urbano.
Estava lançada a premissabetano bonus 300um gibi erótico — O Vira-Lata: "Sempre gosteibetano bonus 300quadrinhos do gênero", diz. "Mas achava os enredos, embetano bonus 300maioria, bem fracos. Eram meras desculpas para transas desconexas. Eu queria bolar algo melhor, uma história violenta e cheiabetano bonus 300ação, com texto bem trabalhado".
Aos poucos, a trama ganhou forma. Nas esquinasbetano bonus 300São Paulo, o grupobetano bonus 300extermínio Saneamento Básico mataria prostitutas e mendigos. Um andarilho, versadobetano bonus 300ritos afro-brasileiros e manejobetano bonus 300espadas, vingaria cada assassinato, desmantelando a organização. Paralelamente, flashbacks mostrariam ao leitor as origens do herói:betano bonus 300mãe, vítimabetano bonus 300feminicídio, engravidarabetano bonus 300sucessivas relações sexuais com um negro, um japonês, um alemão e um ibérico.
Unidos por Hugo Pratt
Em 1990, Garfunkel fez um desabafo ao músico e produtor Marco Antônio Gonçalves dos Santos, vulgo Skowa: "Estou escrevendo esse roteiro para uma HQ. Já virou um livro, mas não pinta nenhum desenhista".
Skowa deduziu que o projeto interessaria a um amigo, Líbero Malavoglia, a quem telefonou naquele mesmo instante. O ilustrador, conhecido simplesmente como Líbero, tinha uma viagem marcada à Europa, mas se dispôs a encontrá-los dali a alguns minutos, ao ouvirbetano bonus 300Garfunkel que ele buscava "uma onda Hugo Pratt".
Pratt é frequentemente comparado aos escritores Joseph Conrad e Jack London. Teve uma vida nômade e aventureira, evocada nas históriasbetano bonus 300seu personagem mais célebre, o marinheiro Corto Maltese. Quando pequeno, Líbero descobrira o quadrinista nas páginas do Corriere dei Piccoli — suplemento infanto-juvenil do Corriere della Sera, o maior jornal da Itália. Ele ainda guarda os exemplares.
"Olha que lindo", diz, frente às prateleirasbetano bonus 300sua casa,betano bonus 300São Paulo. "Foi aqui que eu conheci as HQs. Também tinha contos, passatempos e matérias educativas. Tudo impressobetano bonus 300quatro cores".
Líbero é filhobetano bonus 300um repórter siciliano, ex-colaborador do Corriere. Rabiscava desde a infância e tornou-se um adolescente obcecado pela Marvel Comics: "A anatomia que eu dominava era a dos super-heróis", lembra. "Muito músculo e poucas curvas. O tesão me levou a esboçar mulheres, mas eu sempre empacava. Era difícil fazer peitos, coxas, bundas. Eu só sabia desenhar corpobetano bonus 300homem".
As travas foram superadas no início dos anos 1980, ao tornar-se assistentebetano bonus 300Alain Voss (1946-2011). O artista franco-brasileiro, ligado à banda Os Mutantes e à mítica revista Métal Hurlant, o introduziu no mercado da ilustração publicitária, após ter lido algumasbetano bonus 300suas histórias.
"Eram narrativas bem curtinhas, publicadasbetano bonus 300gibis underground que nunca passavam do segundo número", diz. "O Vira-Lata, na verdade, foi meu primeiro trabalhobetano bonus 300fôlego como quadrinista. Se o Magrão é o pai do personagem, eu sou a mãe. Tive que parir esse negócio".
Líbero afirma não conhecer nada tão cruel e exaustivo quanto a elaboraçãobetano bonus 300uma HQ —betano bonus 300minutos, os leitores devoram um produto que lhe custou mesesbetano bonus 300trabalho. Garfunkel, entretanto, define os quadrinhos como um espaçobetano bonus 300liberdade total.
"Você pode criar qualquer coisa, sem preocupações com orçamento. Se você quiser uma fugabetano bonus 300helicóptero nas cataratas do Iguaçu, está tudo certo. Seu personagem vai mergulhar numa bolhabetano bonus 300urina, lá nas profundezas do rio Tietê? Tranquilo, também".
Ilustrador e roteirista se encontravam para buscar os filhos na escola, e discutiam ideias pelo meio do caminho. Ao longo da entrevista, vão citando mais algumas inspirações: as obrasbetano bonus 300Carlos Zéfiro, Jack Kirby e Moebius; o mangá Lobo Solitário; a série noir espanhola Torpedo 1936; os filmes Sanjuro,betano bonus 300Akira Kurosawa, e Era uma Vez na América,betano bonus 300Sergio Leone; suas próprias vivências enquanto praticantesbetano bonus 300artes marciais. Garfunkel é praticantebetano bonus 300kenjutsu, e Líbero, faixa pretabetano bonus 300aikido.
"As cenasbetano bonus 300ação eram uma bronha", confessa o desenhista. "A gente discutia a maneira mais adequadabetano bonus 300meter a faca nos vilões,betano bonus 300rasgar suas gargantas com lâmpadas tubulares,betano bonus 300estilhaçar um prato na cara deles. Chegávamos a coreografar os golpes nos mínimos detalhes".
A história foi publicadabetano bonus 300novembrobetano bonus 3001991, pela revista Animal — na época, a maior referênciabetano bonus 300quadrinhos adultos do Brasil. O marido da atriz Regina Braga, com quem Garfunkel trabalhara na peça Estrebucha Baby, adquiriu um exemplar. Ele chefiava o serviçobetano bonus 300imunologia do Hospital do Câncer e via no gibi a oportunidade ideal para mitigar uma velha angústia. Seu nome era Drauzio Varella.
Uma pandemia assola o Brasil
Varella ainda se lembra daquele almoço, no segundo semestrebetano bonus 3001981. Junto aos colegas, ele recepcionava um médico norte-americano que desembarcarabetano bonus 300São Paulo há poucos dias. Surpreso, o estrangeiro descrevia aos anfitriões o quadro clínicobetano bonus 300alguns pacientes — três jovens homossexuais, diagnosticados com uma variante agressiva do sarcomabetano bonus 300Kaposi.
"Era um tipobetano bonus 300câncer, até então raríssimo", explica Varella. "Classicamente, evoluíabetano bonus 300forma lenta, com lesões roxas na pele, e vitimava judeus, árabes, homens idosos do Mediterrâneo. Fiquei invocado com aqueles casosbetano bonus 300rapazes tão novos".
Menosbetano bonus 30024 horas depois, dirigiu-se à Escola Paulistabetano bonus 300Medicina. Na biblioteca, folheou a coleção do Morbidity and Mortality Weekly Report, periódico científico editado pelo Serviço Nacionalbetano bonus 300Saúde dos EUA. Um número recente continha descrições semelhantes às que ouvira na véspera.
Em Los Angeles, os infectologistas Michael Gottlieb e Joel Weisman haviam examinado cinco portadoresbetano bonus 300Pneumocystis carinii — fungo causadorbetano bonus 300pneumoniabetano bonus 300indivíduos imunossuprimidos, mas pouco usual noutros quadros. Os pacientes, sem nenhuma condição prévia que justificasse sintomas graves, apresentavam febre alta, diarreia crônica, erupções cutâneas, perdabetano bonus 300peso e inchaço nos gânglios linfáticos. Todos eram gays, e dois já estavam mortos.
O artigo, publicadobetano bonus 3005betano bonus 300junho daquele ano, é hoje considerado o primeiro registro sobre a AIDS na história da literatura médica: "Eu queria muito entender aquele negócio", lembra Varella. "Uma doença viral, que provocava depressão imunológica, infecções oportunistas e câncer. Tudo o que sempre gosteibetano bonus 300estudar".
Em 1983, o oncologista fez as malas rumo a Nova Iorque, epicentro da nascente epidemia. Como estagiário do Sloan Kettering Memorial Hospital,betano bonus 300Manhattan, observou diversos enfermos com HIV. Certa noite, ao final do expediente, encontraria um velho amigo.
"Alguém gritou meu nome no outro lado da rua, enquanto eu saía do hospital. Olheibetano bonus 300meio à escuridão e o cara estava lá, todo encapotado, só esperando uma brecha no trânsito para vir falar comigo. Ele dava aulasbetano bonus 300piano na cidade e me chamou para jantar com um grupobetano bonus 300brasileiros. Nem roupa eu tinha direito, mas topei mesmo assim".
Foi uma festa alegre e majoritariamente LGBT. Entre amenidades e pratosbetano bonus 300feijoada, os convidados teciam palpites sobre a nova moléstia. A AIDS, diziam eles, era um plano do governo Reagan para aniquilar homossexuais. Ali na mesa, porém, todos estariam a salvo — afinalbetano bonus 300contas, tinham preparo físico, equilíbrio psicológico e boa alimentação.
"Percebi que uma tragédia estava prestes a estourar no Brasil", recorda Varella. "Subi a Quinta Avenida naquele friobetano bonus 300novembro, com medo dos rapazes voltarem infectados para cá. As mulheres não seriam poupadas, pois não existe doença sexualmente transmissível que permaneça restrita a um único gênero. Será que só eu via aquilo? Foi uma sensação muito estranha mesmo, como se eu guardasse um enorme segredo".
No retorno ao país, o médico encontraria seus colegas totalmente despreparados. A AIDS dominara a África, e pouco a pouco se difundiabetano bonus 300território asiático. Enquanto isso, a cocaína injetável se proliferava nos bairros periféricos paulistas, sem que ninguém relacionasse o HIV ao usobetano bonus 300drogas.
Varella explicou a situação ao jornalista Fernando Vieirabetano bonus 300Mello (1929-2001), editor-chefe da rádio Jovem Pan: "Ele decidiu gravar meu depoimento. Fiquei meio constrangido, sabe? Na época, os médicos sérios não falavam com veículosbetano bonus 300comunicaçãobetano bonus 300massa".
A entrevista foi divididabetano bonus 300pequenos fragmentos, reprisados no decorrer da grade semanal: "Eu pensava que aquilo ia queimar o meu filme. O Fernando, então, me obrigou a fazer uma escolha — preservar minha imagem ou transmitir informaçõesbetano bonus 300interesse público durante uma pandemia. Foi um momento decisivo para mim".
Filmebetano bonus 300sacanagem
Em 1989, Varella completou quatro anosbetano bonus 300parceria com a Jovem Pan. Suas vinhetas, nunca excedendo três minutos, versavam sobre sexo anal, métodos contraceptivos e esterilizaçãobetano bonus 300seringas, entre outros temas espinhosos para aquele tempo.
"Era um trabalho muito similar ao que faço atualmente no TikTok", diz. "O Fernando já defendia esse formato antesbetano bonus 300todo mundo. Eu falava para senhoras que passavam roupa, para o sujeito que dirigia na rua. Se a mensagem fosse longa, o ouvinte desligaria o aparelho assim que chegasse ao seu destino. Mas, sabendo da curta duração, ele aguardava até o fim, e só depois é que abria a porta do carro".
As intervenções cativaram Maria Odete Brandalise (1943-2014), herdeira da Perdigão e fundadora da TV Barriga Verde, atualmente afiliada à Rede Bandeirantes. A empresária catarinense, desejando produzir um material educativo sobre a AIDS, abordou Varella nos estúdios da rádio.
"Os vídeos sobre o tema eram sempre iguais", lembra o médico. "Eles apenas botavam meia dúziabetano bonus 300gente famosa para repetir umas frases prontas, nunca saíam disso. Avisei que não estava interessadobetano bonus 300nada do tipo, e ela me deu carta branca para percorrer São Paulo com uma equipebetano bonus 300filmagem".
O programa resultante continha depoimentosbetano bonus 300Hebe Camargo, Jô Soares e Pelé, mas não se limitava ao mundo das celebridades — prostitutas e dependentes químicos também apareciambetano bonus 300frente às câmeras. Algumas dessas entrevistas foram gravadasbetano bonus 300boates e zonasbetano bonus 300meretrício; outras, no Complexo Penitenciário do Carandiru, então o maior presídio da América Latina. Cercabetano bonus 3007.200 pessoas viviam por ali.
"Assim que pisei na cadeia, me bateu uma emoção muito forte", conta Varella. "Duas semanas depois, eu ainda pensava naqueles doentes magros, agonizando na enfermaria. Por fim, entendi que se aquele cenário me tocava tanto, é porque eu deveria me aproximar dele. Eu precisava viver aquela experiência".
Com material cedido por um laboratório, o médico se dispôs a examinar todos os detentos que recebiam visitas íntimas. Seu grande medo, logo relatado à direção do cárcere, era a possibilidade daqueles homens estarem infectando namoradas e esposas.
"Mas não havia enfermeiros. Durante a coleta do sangue, acabei pedindo ajuda aos usuáriosbetano bonus 300drogas. Você sabe, né? Os caras se picavam todo dia, tinham muita prática com seringa. Rapaz, nunca vi quem pegasse uma veia tão bem quanto eles".
Na amostragembetano bonus 3001492 presos, 17,3% receberam diagnóstico soropositivo. Alarmado, Varella propôs uma campanha educacional no velho cinema da penitenciária, obtendo a ajuda do carcereiro Valdemar Gonçalves (1948-2021). Viria dele o macete para garantir a presença do público às sete da manhã: "Doutor, todo mundo tem que ver essa palestra. A gente abre individualmente cada pavilhão, o povo chega e nós fechamos a porta. Aí o senhor fala, e no final a gente passa um filmebetano bonus 300sacanagem. Mas saia da sala, para não perder o respeito".
Por anos, a iniciativa foi um sucesso. O médico, entretanto, sentia faltabetano bonus 300um bom material complementar, que chamasse a atenção dos presos — os panfletosbetano bonus 300papel couchê, com dizeres oficiais da Organização Mundial da Saúde, iam direto para o lixo.
"Esses carasbetano bonus 300Genebra ficam atrás da escrivaninha, crentes que vão se comunicar com todo mundo, mas a linguagem deles não atinge as prisões", diz. "Eu via os detentos espremidosbetano bonus 300cubículos, os corpos cheiosbetano bonus 300sarna e furúnculos, um troço medonho. Muitos deles liam gibis, e isso me fez lembrar do Vira-Lata. Eu tinha gostado bastante da HQ, e percebi que daria um personagem bacana, se a gente adaptasse para a cadeia. Falei com o Magrão e com o Líbero, eles se interessaram imediatamente".
O médico e os quadrinistas, entretanto, não contavam com o massacre que se avizinhava.
Fora desse planeta
Mesmo que nenhuma tragédia eclodisse naquela sexta-feira, 2betano bonus 300outubrobetano bonus 3001992, a data teria se enraizado na memóriabetano bonus 300Varella.
Às onze horas, o médico se encontrava no cinema, palestrando para 82 travestis — uma nova testagem revelara que 78% delas eram soropositivas. Ao término da explicação, foi interpelado por uma espectadora: "Era super delicadinha", lembra. "Me olhou muito séria, lixando as unhas, e disse que toda aquela conversa seria inútil enquanto a gente não distribuísse preservativos na cadeia. Graças a ela, me atentei para essa necessidade".
Varella ainda assimilava a bronca quando José Ismael Pedrosa (1935-2005), diretor da penitenciária, o convidou para um café: "Era meio-dia, fui até a sala dele e ouvi um montebetano bonus 300causos. Ele me disse para não ter pressa, que sexta-feira era o dia mais tranquilo do Carandiru. Lá por voltabetano bonus 300uma e pouco, avisei que precisava sair".
Enquanto os detentos faxinavam celas no aguardobetano bonus 300visitas íntimas, Varella corria até a Universidade Paulista (Unip). À frente da instituição, e com apoio do hotel Maksoud Plaza, ele organizava o 2º Simpósio Internacionalbetano bonus 300Biotecnologiabetano bonus 300Câncer e AIDS — dali a uma semana, o evento traria ao Brasil o norte-americano Robert Gallo, um dos cientistas responsáveis pela descoberta do vírus HIV.
Absortobetano bonus 300trabalho, o médico custou a acreditar na má notícia que um colega lhe trouxe às quatro da tarde: o Carandiru pegava fogo num suposto motim do Pavilhão 9. Em menosbetano bonus 300uma hora, 111 detentos seriam assassinados pela polícia — quase todos, réus primários.
Garfunkel acompanhava a operação pelo telejornal: "Eu me lembro do horror, dos familiares chorando na rua, os curiososbetano bonus 300volta, uma situação degradante", diz. "Como toda pessoa que gostabetano bonus 300bichos, fiquei nauseado ao saber que a PM atacou os presos com cachorros, que mastigavam as vísceras e genitálias dos mortos".
Meses depois, ao adentrar o cárcere, Líbero finalmente pôde dimensionar o impacto da chacina. Vagando pelos corredores da penitenciária, o ilustrador se deparou com uma enorme pintura, ocupando toda a extensão da parede lateral — uma representação gráfica daqueles corpos nus, empilhados sobre poçasbetano bonus 300sangue.
"Eu me sentia numa tramabetano bonus 300ficção científica", diz. "Como se estivéssemos fora desse planeta, num satélite orbitando a Terra. As gírias, os sons, os aromas, as relações sociais, o códigobetano bonus 300ética, o aspecto visual das coisas, tudo era muito diferente do que eu conhecia".
Em tatuagens e pichações, abundavam referências a Jesus Cristo. No pátio, homens treinavam boxe e capoeira. Ângulos retos pareciam inexistentes —betano bonus 300todas as quinas, havia uma pequena deformação. Escadas, por exemplo, eram íngremes, sem frisosbetano bonus 300metal: "Tudo eles subtraíam para transformarbetano bonus 300faca", explica. "Os presos respiravam uma atmosfera muito tensa, qualquer bobagem poderia resultarbetano bonus 300morte. Talvez por isso, o Carandiru tenha se mostrado um dos ambientes mais polidosbetano bonus 300que já estive".
A cozinha desperta lembranças igualmente vívidas: "Parecia uma sauna", descreve Garfunkel. "Com ratazanas enormes e panelas gigantescas que soltavam muito vapor. A neblina encobria o rosto das pessoas, e tudo o que você enxergava eram pés. Tinha um cheiro fortíssimobetano bonus 300gordura rançosa, misturado com desinfetante e carne podre".
Espaços como aquele, repletosbetano bonus 300utensílios cortantes, eram estrategicamente geridos pelas lideranças do presídio. "A gente se reuniu com os caras", afirma Líbero. "E eles disseram, 'olha, a gente é do crime, aqui todo mundo gostabetano bonus 300história forte. Se vier com gibi fraco da Luluzinha, a gente joga tudo no lixo'".
Garfunkel cita as primeiras mudanças efetuadas no personagem: "Nós envelhecemos o Vira-Lata, e ele deixoubetano bonus 300matar. Antes ele matava legal, né? Mas não dava para introduzir na cadeia um herói sanguinário, assassinobetano bonus 300polícia".
Varella, porbetano bonus 300vez, tinha outros apontamentos: "Para gerar sintonia com os leitores, o Vira-Lata se torna um ex-presidiário. Ele visita os camaradas, fica sabendobetano bonus 300algum problema e sai para resolvê-lo. Eu também achava importante que as aventuras tivessem sexo explícito, com camisinha. E que o protagonista fosse avesso a drogas injetáveis".
Erotizar a camisinha
Na primeira história dessa nova fase, o Vira-Lata investiga o sumiçobetano bonus 300Maria Rosa, cujo pai se encontra no Carandiru. O paradeiro da moça logo é descoberto: trabalhando como diarista para uma família rica, fora assassinada ao engravidarbetano bonus 300Guto, filho dos patrões. O rapaz, descrito como "mais um babaca que toma baque na veia", só não apanha por estar morrendobetano bonus 300AIDS — seus capangas, no entanto, não contam com a mesma sorte. Entre uma briga e outra, o herói saca preservativos para transar com Madalena, melhor amiga da falecida, e Camila, irmã do playboy cocainômano.
A HQ foi publicadabetano bonus 3001993, sob patrocínio da Unip. A empresa financiou o cachê dos artistas e uma tiragembetano bonus 300sete mil gibis, distribuídos gratuitamente aos detentos. Na contracapa, Varella é creditado como supervisor científico, enquanto Garfunkel enumera os atributos do personagem: "Um guerreiro urbano, andarilho justiceiro, filhobetano bonus 300todas as raças, fruto da mistura que é hoje o povo brasileiro".
As referências musicais dão a tônica do enredo, e tornam a aparecer nas aventuras seguintes — Pixinguinha, Cartola, Noel Rosa, Luiz Gonzaga e Tom Jobim são alguns dos compositores evocados pelo herói.
"O que me atrai no cancioneiro nacional é o poderbetano bonus 300síntese", explica Garfunkel. "São crônicas aladas, que atravessam a janela e passam por debaixo da porta, como cheirobetano bonus 300bolobetano bonus 300cenabetano bonus 300desenho animado".
As citações integravam um esforço maior,betano bonus 300apresentar ao público-alvo uma faceta inspiradora do país. A cada número, o Vira-Lata se torna menos urbano, migrando das sarjetas para estradas, ilhas e biomas florestais: "Eu queria levar aos presos um horizonte aberto, com outros Brasis, novas possibilidadesbetano bonus 300luta", diz o roteirista. "E além do mais, o gibi não podia ficar chato. Se a gente insistisse muito nos mesmos cenários e naquele tatibitate sobre a AIDS, ninguém teria sacobetano bonus 300ler até o fim".
Um artifício, porém, assegurava a atenção do leitor: a profilaxia despontavabetano bonus 300circunstâncias atraentes, sem nunca ocupar o centro da narrativa. "Os presos tinham bastante preconceito com camisinha, diziam que era chupar bala com papel", afirma Líbero. "Por isso, nós tentamos erotizá-la. Ela sempre aparece como fontebetano bonus 300excitação".
Às vezes, o preservativo saía da mãobetano bonus 300alguma beldade, que o desenrolava com a boca no pênis do herói. Noutras histórias, é o próprio Vira-Lata quem tira o artefato do bolso, durante festas e celebrações. Em momentos deliberadamente cômicos, Varella surgebetano bonus 300forma caricata, reforçando algumas dicas — como a necessidadebetano bonus 300se remover a camisinha logo após a ejaculação, oubetano bonus 300se utilizar lubrificantes à basebetano bonus 300água.
"Sou contra esse negóciobetano bonus 300ficar repetindo que AIDS mata", declara o médico. "Quando a gente botava personagens agonizando com a doença, era para dar um realismo, mostrar que essa desgraça pode acontecer. Mas nunca foi só para assustar. Está mais do que provado que isso não funciona como mensagem".
Nas lixeiras, os quadrinistas testemunhariam o êxitobetano bonus 300seu trabalho: "O descartebetano bonus 300Vira-Latas foi mínimo", relata Líbero. "Quando um preso guarda determinado objeto, é porque realmente se afeiçoou a ele".
Ave Maria
A entrega dos gibis obedecia sempre a um mesmo ritual: ao entardecer, os lotes eram colocados sobre carrinhos e distribuídos pelos corredores. A logística se baseava na demandabetano bonus 300cada cela e no pudorbetano bonus 300seus ocupantes — evangélicos, por exemplo, se dividiam entre a recusa e a adesão velada.
"Todo dia, às seis horas, os presos escutavam a Ave Maria", lembra Garfunkel, referindo-se à célebre composição cristãbetano bonus 300Charles Gounod. "Havia uma beleza contemplativa naquilo tudo, e também uma melancolia insuportável. O crepúsculo anunciava as trevas e o início do fim, mas a gente seguia adiante, absorvendo os ruídos da chuva, da rádio AM, das portas trancadas".
O aspecto homogêneo das grades, somado à angústia do momento, provocava lapsos: "Você se confundia, sem saber se já tinha deixado o gibi naquele lugar", conta Varella. "Mas não tinha erro, era só olhar pelo guichê. Onde você tinha entregue, os caras estavam lendo".
O herói não tardaria a ser adotado como mascote pela população carcerária. Ganhou, inclusive, uma alcunha carinhosa — Vira-Latinha.
"Nos retornos, a gente queria saber o que os presos tinham achado da história anterior", afirma Líbero. "Daí eles sempre convidavam a gente para tomar um café, e aos poucos nos tornamos pessoas queridas lá dentro. Existia, por parte deles, uma necessidade muito grandebetano bonus 300afeto e diálogo".
A cada encontro, a equipe testemunhava novos avançosbetano bonus 300consciência entre os leitores. Em 1995, os índicesbetano bonus 300HIV do presídio haviam caído para 13%. No ano 2000, se reduziram a 8%.
"Fora da cadeia, chamava-se a AIDSbetano bonus 300peste gay", relata Varella. "Mas os detentos conheciam a verdade. Eles mesmos cuidavam dos soropositivos, acolhendo e consolando na fase terminal. Dentro do Carandiru, o HIV nunca foi uma simples teoria".
Até a implosão da penitenciária,betano bonus 300dezembrobetano bonus 3002002, foram produzidos oito números do Vira-Lata. Hoje, essa parceria se desdobra noutras frentes: Líbero ilustra a colunabetano bonus 300Varella na Folhabetano bonus 300S.Paulo, e Garfunkel roteiriza vídeos para o médico no YouTube. O personagem, agora repaginado, está prestes a ganhar uma nova história.
"O Vira-Lata é um herói popular, semprebetano bonus 300defesa do oprimido, embora tenha idiossincrasias machistas", observa Líbero.
Garfunkel adianta detalhes do roteirobetano bonus 300andamento: "O Vira-Lata vai topar com o crack, o PCC, as milícias, a institucionalização da brutalidade pelo Estado, e também com o Doutor Kuroda, um legista japonês que trafica órgãos".
Kuroda, explica o músico, é inspirado no ex-diretor do IMLbetano bonus 300São Paulo, Harry Shibata, que produzia laudos fraudulentos para a ditadura militar.
Em 1975, Shibata atestou que Vladimir Herzog havia se enforcado nas dependências do DOI-Codi. O documento foi desmentido pelo rabino Henry Sobel (1944-2019), que vira marcasbetano bonus 300tortura no cadáver do jornalista. Uma ação pública, subscrita pelo advogado Samuel Mac Dowell, apontaria a conivência do médico com o assassinato.
Em 1982, Mac Dowell namorava Elis Regina. A cantora morreu no dia 19betano bonus 300janeiro daquele ano. Sua autópsia foi realizada por Shibata. O médico logo anunciou à imprensa uma suposta causa para o óbito: overdosebetano bonus 300cocaína.
"Imagine só que grotesco", declara Garfunkel. "A maior estrela do país, namoradabetano bonus 300seu inimigo, aparece mortabetano bonus 300suas mãos. Você abre o corpo dessa mulher incrível e aproveita a oportunidade para difamá-la. Fui amigo da Elis, e isso até hoje me deixa transtornado. Como já dizia Guimarães Rosa, Deus é traiçoeiro".
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