Como os nordestinos 'inventaram' o Sul do Brasil:herediano palpite

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Essa realidade pode ser constatada não apenas pelo exame dos sobrenomes das famílias mais antigas, muitos dos quais são ramosherediano palpitecélebres clãs baianos e pernambucanos - Azevedo, Coelho, Silva, Freire, Furtado, Melo, Cunha, Borges, Costa, Vieira e outros - como pela observaçãoherediano palpitetipos físicos, economia, religiosidade e cultura.
Autor da trilogia A Fronteira (2002 e 2015), sobre a fixação dos limites entre Brasil, Uruguai e Argentina, o historiador Tau Golin recomenda cuidado àqueles que, no Rio Grande do Sul, fizerem referência a nordestinos como inferiores. "Ao fazer isso, grande parte dessas pessoas está possivelmente degradando os próprios antepassados. Muitos descendem desses nordestinos", adverte.
Segundo o historiador, os atuais Estados do Sul e, principalmente, o Rio Grande do Sul foram inicialmente territórios conquistados e ocupados por uma grande variedadeherediano palpitebrasileiros vindos do Norte, entre os quais se sobressaem os oriundos da região que hoje corresponde ao Nordeste.
Aqueles que hoje se chamam nordestinos eram especialmente numerosos entre os engajados nas primeiras expedições marítimas à costa rio-grandense.
"Nos períodos colonial e imperial, o Rio Grande do Sul foi povoado por políticasherediano palpiteEstado e por aventureiros. As políticasherediano palpiteEstado eram executadas por meioherediano palpiteprojetosherediano palpitepovoamento territorial e,herediano palpiteépocaherediano palpiteguerra, pela concessãoherediano palpitelotes rurais e urbanos a soldados", descreve Golin, doutorherediano palpiteHistória pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
A história do Rio Grande do Sul é permeadaherediano palpitepersonagens nascidos e criados na atual região Nordeste que, radicados ouherediano palpitepassagem pelo Sul, ajudaram a mudar a integrar o espaço ao Brasil.
Foi um militar nascido na Bahia, Domingos Alves Branco Muniz Barreto (1748-1831), o primeiro a incentivar a exploração do charque ("as carnes salgadas que devem ser exportadas a este reinoherediano palpitelugar das que vem da Irlanda") na regiãoherediano palpitePelotas, destinada a Portugal pelo Tratadoherediano palpiteSanto Ildefonso (1777).
No século 19, outros militares deixaramherediano palpitemarca na história local, como o marechal Deodoro da Fonseca (de Alagoas), o almirante Custódio Joséherediano palpiteMello (da Bahia) e o capitão Tupy Caldas (do Maranhão), a quem muitas vezes é erroneamente atribuída origem gaúcha.
Para Golin, porém, é um erro limitar a contribuição do atual Nordeste a esses personagens ilustres.
"São nomes da elite colonial, do Império e da República, conhecidos na história oficial. O fenômeno é muito mais profundo, porque é preciso levarherediano palpiteconta o contingente populacional. Os nordestinos vão contribuir muito na formação gentílica, na mestiçagem", explica Golin.
A influência nordestina no charque
A indústria do charque (chamadoherediano palpitecarneherediano palpitesol no Nordeste), atividade econômica mais importante do Rio Grande do Sul no século 19, é um dos exemplos mais claros da influência nordestina.

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A implantaçãoherediano palpitecharqueadas com vistas à comercialização é atribuída a José Pinto Martins, português que criou a primeira fábricaherediano palpitecharque às margens do Arroio Pelotas ou do Canalherediano palpiteSão Gonçalo no último quartel do século.
Pinto Martins chegou ao Rio Grande do Sul vindo do Ceará, onde já produzia carneherediano palpitesol. A mudança foi motivada pela secaherediano palpite1777, conhecida como "Seca dos Três Sete", que se estendeu até 1880 e provocou a morteherediano palpitemais da metade da população da região atingida no Nordeste.
"Uma das razões mencionadas para a transferênciaherediano palpitePinto Martins para o Rio Grande é que as secas tinham deixado o gado nordestinoherediano palpiteestado reduzido e mal nutrido", afirma Ester Gutierrez, autoraherediano palpiteNegros, Charqueadas e Olarias: Um Estudo sobre o Espaço Pelotense (2001).
Em 1824, Pinto Martins sentiu-se mal e ditou seu testamento. Solteiro, reconheceu como herdeiro João Pinto Martins, filho que tivera com uma ex-escravizada, e deixou dinheiro para dois outros filhosherediano palpiteex-cativas.
"Esses escravos, que trabalhavam nas embarcações que levavam o charque para o portoherediano palpiteRio Grande, eram nordestinos. No testamento, Pinto Martins libertou-os", diz a doutoraherediano palpiteHistória pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
A ideiaherediano palpiteidentidades regionais
Para Jocelito Zalla, autorherediano palpiteSimões Lopes Neto e a Fabricação do Rio Grande Gaúcho (2022), a ideiaherediano palpiteinfluência do Nordeste na formação do Sul antes do século 20 deve ser vista com cautela. Foi só a partir dessa época que se firmaram as noçõesherediano palpiteidentidade regional predominantes até hoje.
"A ideiaherediano palpiteNordeste é recente. Segundo o historiador Durval Munizherediano palpiteAlbuquerque, até os anos 1920 usava-se o termo mais geral 'Norte' para a região. Os traços culturais e sociais, além da definição da paisagem representativa, só se estabelecem nesse período", lembra.
Nos períodos colonial e imperial, diz Zalla, a própria população do que hoje é conhecido como Nordeste definia-se a partirherediano palpiteoutros recortesherediano palpiteidentidade política, geralmente locais.

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"Nem o Nordeste nem o nordestino existiam no períodoherediano palpiteformação do Rio Grande do Sul. Do pontoherediano palpitevista da História, as pessoas que emigraram para cá (Sul) ainda não eram nordestinas", assinala.
No século 20, por outro lado, Zalla identifica não apenas trocas simbólicas entre as regiões mas uma verdadeira colaboração na construção das duas identidades, a do Sul e a do Nordeste.
"A visãoherediano palpiteregionalismoherediano palpiteGilberto Freyre confluiu com a dos modernistas do Rio Grande do Sul, como Moysés Vellinho, principalmente depois dos anos 1930. José Lins do Rego comentou literatura gaúchaherediano palpiteseus livrosherediano palpitecrítica literária dos anos 1930 e articulou uma visitaherediano palpiteFreyre ao Rio Grande do Sul", enumera o doutorherediano palpiteHistória pela Universidade Federal do Rioherediano palpiteJaneiro (UFRJ).
No terreno da cultura, essa proximidade evoluiu muitas vezes para a produçãoherediano palpiteobras. A primeira edição crítica da coletânea Contos Gauchescos e Lendas do Sul,herediano palpiteSimões Lopes Neto (1865-1916),herediano palpite1949, não foi organizada por nenhum pesquisador gaúcho, mas pelo alagoano Aurélio Buarqueherediano palpiteHolanda Ferreira (1910-1989).
"Ele incluiu na obra um estudo formalista consagratório e um vocabulário que permitiu a compreensão do texto no restante do Brasil, alémherediano palpitemobilizarherediano palpiteredeherediano palpitesociabilidade intelectual no Rioherediano palpiteJaneiro para difundir o livro", explica Zalla.
Outro exemplo é oherediano palpiteLuiz Carlos Barbosa Lessa (1929-2002), um dos fundadores do movimento conhecido como tradicionalismo gaúcho, que, nos anos 1950,herediano palpiteSão Paulo, produziu canções e programas regionalistasherediano palpiteTVherediano palpiteparceria com nordestinos e compôs um xote gravado por Luiz Gonzaga (1912-1989).
O preconceito
Isso não significa,herediano palpiteacordo com Zalla, que não existam estigmas relacionados à região que corresponde ao atual Nordeste. "No Rio Grande do Sul, por exemplo, no século 19 chamavam-seherediano palpiteforma pejorativaherediano palpite'baianos' todos os brasileiros dos atuais Norte e Nordeste. Isso pode ser mapeado no cancioneiro da Revolução Farroupilha", observa.
Para Golin, esse preconceito antibaiano e antinordestino, no Sul, está ligado a um aspecto central da formação nacional brasileira: a questão racial.
"Esse problema se manifesta pela questão do fenótipo, do tipo físico, que, porherediano palpitevez, se relaciona ao lugar social dos nordestinos. Essa base, que vai se associar à ignorância histórica, tem um lastro muito acentuado entre os descendentesherediano palpitemigrantes", afirma.
Golin define esses contingentes como "grandes cotistas". "São pessoas que vêm para o Brasil com grandes vantagens, num processoherediano palpitemigração que tinha por paradigmas o estímulo à pequena propriedade e à produção para o mercado interno e, principalmente, o processoherediano palpiteapagamento da história da escravidão e o branqueamento da população", explica.
O panoherediano palpitefundo dessa política foi, na opinião do historiador, o desejo do Império do Brasilherediano palpiteparticipar do Concerto das Nações.
Os migrantes instalaram-seherediano palpiteespaços desprezados pelo latifúndio e pela grande empresa rural: os territórios indígenas. "Foi preciso convencer esses migrantes, com um discurso ideológico e racial,herediano palpiteque estavam vindo para o Brasil travar uma luta entre civilização e barbárie", argumenta.
O resultado foi que, nas regiõesherediano palpitepredomínioherediano palpitemigrantes, a população assentada tende a situar tudo que não se assemelha aherediano palpiteetnia "em um nível inferior", diz Golin.
"Seu discurso se expressaherediano palpitechacotas, mas tambémherediano palpiteformulações políticas, como uma formaherediano palpitediminuição do que não pertence à comunidadeherediano palpiteorigem migrante. Os 'estranhos' são os brasileiros, os negros", conclui.
Este texto foi publicado originalmenteherediano palpitehttp://www.mi-rob.com/brasil-63733197








