Mergulhado no 'discurso da estupidez', Brasil está se acostumando à multiplicação das mortes, diz psicanalista:caixa super sete

  • Amanda Mont’Alvão Veloso
  • De São Paulo para a BBC News Brasil
Foto à noite, mostra mulher paradacaixa super setepontocaixa super seteônibus com máscara e, ao fundo, uma projeçãocaixa super seteluz no prédio do Congresso dizendo: Luto 100 mil

Crédito, REUTERS/Adriano Machado

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Homenagemcaixa super seteBrasíliacaixa super setefrente a projeção sobre as maiscaixa super sete100 mil pessoas que perderam a vida para a covid-19 no país; marca foi ultrapassadacaixa super seteagostocaixa super sete2020

caixa super sete Após maiscaixa super sete500 mil mortos por covid-19 e uma população fadigada pelas medidascaixa super seteisolamento social, seria possível supor que o clamor por uma vacina contra o novo coronavírus fosse unânime entre os brasileiros.

No entanto, posições antivacina, embora minoritárias no país, já foram compartilhadas pelo presidente da República e por cidadãos,caixa super seteum contextocaixa super setenegacionismo da pandemia e desapreço pela ciência.

Em 1913, antes mesmocaixa super setevivenciar os horrores da gripe espanhola, Sigmund Freud escrevera que não havia "nada mais caro na vida que a doença - e a estupidez".

Definida por dicionários como uma ausênciacaixa super setediscernimento, a estupidez tem caracterizado um posicionamento específicocaixa super setealgumas pessoas diante da vida, argumenta o psicanalista Mauro Mendes Diascaixa super seteseu livro O discurso da estupidez (editora Iluminuras).

O autor identifica a vigência, hoje,caixa super seterelações entre pessoas e com o mundo baseadascaixa super seteuma substituição da verdade pela crença.

Segundo ele, a estupidez é local e, ao mesmo tempo, internacional.

Mauro Mendes com sorriso contidocaixa super setefrente a estantecaixa super setelivros

Crédito, Arquivo pessoal

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'Quem quer resolver um problema com seriedade não pode achar que botar um muro vai zerar os conflitoscaixa super seteum país', diz o psicanalista Mauro Mendes Dias

Esse discurso, que é sem rosto e sem palavras, fica visível por meio das vociferações, conceito psicanalítico criado para designar os gritos marcados pelo ódio e que visam a impedir qualquer possibilidadecaixa super setediálogo. Alguns minutoscaixa super seteinteração nas redes sociais oferecem farta amostragemcaixa super seteuma comunicação cada vez mais vociferante.

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Em entrevista à BBC News Brasil, Mendes Dias, que é diretor do Instituto Voxcaixa super setePesquisacaixa super setePsicanálise, explica que a maior ênfase do discurso da estupidez "reduz a complexidade, a inteligência e a reflexão".

Mendes Dias observou isso com a entrada do ex-premiê Silvio Berlusconi na política italiana, ainda nos anos 1990, inserindo naquela cena o mundo do marketing e da mídia. "Quando a política se torna um espetáculo, trata-secaixa super setetransformar a complexidade da realidade,caixa super seteagradar o público e a opinião pública, e não do compromisso político. Então, o discurso da estupidez propiciou o adventocaixa super setelíderes estúpidos", diz o psicanalista.

"Mas isso não é feito iludindo as pessoascaixa super seteforma grosseira. Tem que ser construída uma outra realidade", prossegue. Nessa outra realidade, que deixa tudo definido e decidido para que os sujeitos simplesmente sigam, sem precisar fazer escolhas, as fake news e os absurdos são fundamentais para a "transformação da políticacaixa super seteum espetáculo grosseiro".

"O que hácaixa super setecativante no discursocaixa super seteestupidez é que ele soube bem mobilizar essa espéciecaixa super setepaixão que habita a coletividade, que é poder ficar cega e surda pra tudo aquilo que importa", argumenta Dias.

"Nesse sentido, não é por acaso que os líderes estúpidos, principalmente aqueles que ascenderam na Europa, elegeram o imigrante como o grande problema. Ou nos EUA,caixa super seteque se pensou que um muro na fronteira com o México ou acusar a Chinacaixa super setequerer roubar a economia mundial iria resolver todas as questões do país. Quem quer resolver um problema com seriedade não pode achar que botar um muro vai zerar os conflitoscaixa super seteum país."

Segundo o autor, esses são exemploscaixa super seteo quanto se abre mão do pensamento crítico. "O estúpido quer prometer absurdos e cultivar uma espéciecaixa super seteadoração da morte; trata-se, o tempo todo,caixa super setedestruir. Seja uma ilusãocaixa super setemudança, seja tudo aquilo que representa o patrimônio da humanidade, no sentido ecológico ou cultural."

A principal tese do livro é acaixa super seteque no discurso da estupidez,caixa super seteseu propósitocaixa super seteinstalaçãocaixa super seteuma nova realidade, a crença é colocada no lugar da verdade. Mas ele faz uma ressalva: "Não é uma questãocaixa super setereligião, é uma questãocaixa super seteseitas."

Capacaixa super setelivro com 3 rinocerontes retratados

Crédito, Divulgação

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Psicanalista é autor do livro 'O discurso da estupidez'

Na prática, a crençacaixa super seteum absurdo tem caráter cativante porque retira a necessidadecaixa super setese lidar com a complexidade que é viver. "Se a gente se orientar pelos princípios das seitas, pra que vivercaixa super setemaneira virtuosa, estudando, ou lendo, se daqui a pouco tudo vai acabar?"

A aderência às ideias absurdas não decorrecaixa super seteignorância, baixa escolaridade ou condição socioeconômica, explica Dias. A ligação à crença passa por questões mais complexas, como a sexualidade.

"Não por acaso a vigência dos líderes estúpidos cobra sempre o preço da eliminação das diferenças. Uma vez que os líderes estúpidos surgem na cena política, eles apregoam uma moral heteronormativa combativa da diversidade sexual e encontram um apoio significativo nas diferente 'igrejas' que proliferam nesse país e que fazem questãocaixa super setecolaborar com a estupidez ao identificar essa diversidade sexual com o demônio."

Estupidez e teorias da conspiração

Tanto o Brasil quanto outros países são palcocaixa super seteoutra modalidadecaixa super seteenlaçamento pela crença: as teorias da conspiração, que, segundo o psicanalista, constituem comunidadescaixa super seteque pessoas compartilham um certo modo do vida.

É o caso do movimento QAnon, nascido nos EUA e hoje com adeptos inclusive no Brasil. Segundo esta teoria, o ex-presidente dos EUA Donald Trump é heróicaixa super seteuma espéciecaixa super seteacertocaixa super setecontas final contra poderosos supostamente pedófilos e satanistas que ocupam o governo, a imprensa e o mundo corporativo.

No início do ano, membros do grupo participaram da invasão ao Congresso americano.

Manifestantes comemoram invasão do Congresso dos EUA

Crédito, EPA

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Manifestantes comemoram invasão do Congresso dos EUAcaixa super setejaneiro

O psicanalista brasileiro destaca que,caixa super seteteorias como essa, o absurdo confere aos sujeitos a possibilidadecaixa super seteatos insensatos.

"O sujeito se mantém cego e surdo, mas é mais perigoso - acabamoscaixa super seteter a demonstração disso na invasão do Capitólio,caixa super seteque pessoas morreram."

"Esse tipocaixa super seteagrupamento humano consente à experimentação do gozo transgressivo, ou seja, você poder transformarcaixa super setevontadecaixa super setelei: 'Minha vontade é que isso [a existênciacaixa super seteuma redecaixa super setepedofilia chefiada por líderes políticos] seja verdade, o que vai me autorizar a dar uns tiroscaixa super setequem eu quiser'."

Eles acreditam nisso?

Se para alguns persiste a convicçãocaixa super seteque a Terra é plana, o coronavírus não existe ou Trump vai acabar com uma elite praticantecaixa super setepedofilia, fica a pergunta: as pessoas realmente acreditam nisso que defendem ou são pessoas conscientescaixa super seteque estão propondo outras realidades?

O diretor do Instituto Vox esclarece que há, por um lado, a adesãocaixa super setesujeitos psicóticos ao discurso da estupidez, uma vez que eles "encontram um determinado tipocaixa super seteconforto ecaixa super setepacificação" porque aquela comunidade, aquele grupocaixa super setemembros, não implica questões complexas que trariam dificuldades muito grandes para estes sujeitos.

No entanto, Dias adverte que qualquer umcaixa super setenós pode aderir ao discurso da estupidez, por meiocaixa super setemotivações diferentes. Em seu livro, ele explica que a estupidez é uma condição humana que pode estar presente "em cada um dos espectros políticos e dos cidadãos".

Ele explica que alguns aderem a esse discurso porque encontram, neste momento histórico, a possibilidadecaixa super seteconquistarcaixa super seteforma mais rápida seus diferentes objetivos, incitando a reduçãocaixa super setetodas as complexidades possíveis e promovendo a destruição e a morte.

Para outros, a adesão derivacaixa super seteuma espéciecaixa super setenecessidadecaixa super setese acreditarcaixa super seteabsurdos como formacaixa super seteencontrar satisfação ou manter alguma esperança. E esta disposição ao absurdo tem relação com questõescaixa super setedesamparo e perspectivascaixa super setevida.

"Eu diria que praticamente a grande maioria das pessoas,caixa super setese tratandocaixa super seteBrasil, precisa acreditar nessas coisas. Não são loucas - essas pessoas vêm desacreditando. Mas é difícil ter que desacreditar porque elas só acreditaram por estarem no abandono total."

Este abandono se refere a uma decepção com as promessas não realizadas do sistema democrático. O bem-estar social e econômico prometido não veio, e isso alimentou as consequências que vivemos agora.

"O que a gente está criticando agora não caiucaixa super seterepentecaixa super setecima do meu colo nem do seu. Um terreno adubou isso."

"Nosso presidente da República estava há praticamente 30 anos dentro do Poder Legislativo, então isso não vemcaixa super seteagora. O difícil, eu penso, é tercaixa super setereconhecer que isso já está estava aí. Só que havia uma percepção limitada, uma banalização do nível da tolerância das pessoas. Supôs-se que os diferentes dramas humanos e as diferentes misérias iriam esperar pelas promessas democráticas, enquanto as pessoas viam o roubo e a dilapidação do patrimônio do país. Supunha-se que as pessoas iam continuar aceitando isso e que ninguém ia reagir."

Jair Bolsonaro

Crédito, Reuters

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'Nosso presidente da República estava há praticamente 30 anos dentro do Poder Legislativo, então isso não vemcaixa super seteagora', diz Mauro Mendes sobre Bolsonaro

O resultado desse processocaixa super seteanos, na avaliaçãocaixa super seteDias, foi uma perigosa recusa da política, com desdobramentos no enfrentamento da pandemia.

"São seres verdadeiramente hediondos que estão aí na realidade social brasileira. Digo isso porque se tem uma coisa que qualifica o sentidocaixa super setehediondo é você consentir que as figuras públicas não tenham nenhuma competência pra poder administrar responsabilidades da nação e, ainda assim, se mantenham lá."

"Isso significa que estamos indo galopantementecaixa super setedireção à destruição, e o tipocaixa super setetratamento que está sendo dado nesse país para a potência do vírus só reafirma o que estou dizendo. Estamos nos acostumando à proliferação e a multiplicação da morte à nossa volta."

O luto na pandemia

Na medidacaixa super seteque o vírus continua a circular e a fazer vítimas, o processocaixa super seteperdacaixa super seteentes queridos fica cumulativamente mais doloroso, já que velórios e enterros precisam ser limitados por conta da contaminação.

"O luto e a dor sempre andaram juntos, mas neste momentocaixa super seteque a dor não pode ser reduzida a partir dos rituais, ela ganha uma dominância dentro do processocaixa super seteluto, sendo mais difícilcaixa super seteser vivida e elaborada. Isso leva ao surgimentocaixa super setequadros como estados depressivos, dificuldadescaixa super setedormir, crisescaixa super seteansiedade com maior frequência e irritabilidade."

"Penso que só depois que passar a quarentena e as pessoas voltarem aos convívios entre seus próximos que a gente vai conseguir ter uma ideia mais viva desses diferentes problemas que foram gerados."

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Parentescaixa super setevitimascaixa super setecovid-19caixa super setecemitériocaixa super seteManaus

Não são apenas os desafios psíquicos trazidos pelo vírus que preocupam o psicanalista, que emcaixa super seteexperiência supervisionou hospitais psiquiátricos, Caps (Centroscaixa super seteAtenção Psicossocial) e outros dispositivos.

Há ainda as planejadas investidas do governo contra os modeloscaixa super setetratamento que consideram a subjetividade dos sujeitos e apostamcaixa super setesuas relações com o mundo, alinhados à Reforma Psiquiátrica e à Luta Antimanicomial.

Para Dias, que há quase duas décadas avalia as práticas terapêuticascaixa super setepacientes nos Hospitais São Joãocaixa super seteDeus e Nossa Senhoracaixa super seteFátima,caixa super seteSão Paulo, os fundamentos da Reforma Psiquiátrica agora sucumbem para privilegiar pequenos negócios relativos a internação psiquiátrica, por meiocaixa super seteclínicas utilizadas com essa finalidade.

"Trata-se do retornocaixa super seteuma mentalidade redutora e punitiva, no sentidocaixa super setevisar a uma adaptação forçada às expectativas do meio social. Basta um poucocaixa super seteexperiência nesse campo para constatar a lucratividadecaixa super setetais iniciativas, que contam com hiperinvestimentos nas medicações."

"Sabe-se, também, que o tempocaixa super seteinternação é cada vez mais reduzido, tendocaixa super setevista a faltacaixa super setevagas na rede pública, aliada ao baixo valor das diárias pagas pelo SUS para manter o paciente internado. Tudo se passa como se o binômio internação/medicação fosse suficiente para abordar a complexidade das patologias mentais."

Tratamentos para o discurso da estupidez

Diagnósticoscaixa super seteuma época são recorrentes na Psicanálise, como demonstraram Freud e Lacan ao teorizar sobre as relações entre as pessoas, a cultura e o poder.

Dias identifica o discurso da estupidez e propõe tratamentos possíveis. Mas não se tratacaixa super seteuma solução, como ele explica: "(É preciso) reconhecer a culpa como um elemento que reúne as pessoas pra pensar seriamente seus erros, suas ilusões. É a necessidadecaixa super seteretomar projetos políticos que não fiquem tão confiantescaixa super seteque as pessoas vão ficar esperando indefinidamente por soluções e que não vão reagircaixa super setenenhum momento."

Dias aponta que também é necessário reconhecer a complexidade dos afetos humanos e reconsiderar o papel decisivo do ódio tanto na subjetividade individual quanto na coletiva.

"Essa é uma crítica necessáriacaixa super seteser feitacaixa super seterelação às ideologias, praticamente ascaixa super seteesquerda, que sempre acreditaram no poder da união ecaixa super seteque as pessoas iam querer o bem e o melhor pracaixa super setecoletividade."

Ele frisa que o discurso da estupidez ensina como é possível mobilizar a paixão que as pessoas têm pela fragmentação e pela luta por interesses próprios.

Ele defende também ações práticas, como o reconhecimentocaixa super setepessoas que exercem a solidariedadecaixa super setecomunidades.

"Esses heróis do cotidiano merecem ser reinvestidos por cada umcaixa super setenós interessadocaixa super seteque essa realidade se modifique."

Línea.

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