Elogios ao golpe64 e críticas ao Brasil: quem foi Elizabeth Bishop, a polêmica homenageada da Flip:

Crédito, Vassar College Library Archives
Bishop será a primeira autora estrangeira homenageada pela Flip, que chega a18ª edição2020. A organização do evento diz que a poeta era cogitada como uma possível homenageada há maisdez anos e que seu nome foi sugerido por várias pessoas à direção da Flip.
"A boa arte é aquela que faz a gente enxergar o mundo criticamente, e a observação que Elizabeth Bishop faz do mundo emobra é uma boa lente para a gente entender e refletir sobre o Brasil", diz Mauro Munhoz, diretor artístico da Flip, à BBC News Brasil.
Sua produção é considerada concisa. São apenas 101 poemas, divididostrês livros, ao longo dos seus 68 anosvida. Quem estudavida e obra credita isso ao um perfeccionismo e autocrítica extremos, que a faziam se dedicar meses ou mesmo anos a um único texto.
"Bishop só publicava quando achava que estava perfeito, irretocável. Nos seus rascunhos, você percebe como um poema que começa sentimental e sem forma vai sendo aperfeiçoado até tudo se encaixar e virar uma joia perfeita. Ela é uma artífice da palavra como poucos", diz o poeta Paulo Henriques Britto, professorLetras da Pontifícia Universidade Católica do RioJaneiro (PUC-RJ) e responsável pela traduçãoalguns trabalhosBishop.
Esse zelo pelas palavras rendeu a Bishop dois dos principais prêmios literários dos Estados Unidos: o Pulitzer,1956, pela antologia poética North & South, e o National Book Award,1970, com The Complete Poems.
Britto explica que ela faz parte da primeira geraçãoescritores que começou a produzir sob o impacto dos modernistas e incorpora suas lições sem abrir mãodiálogo com o passado, equilibrando-se entre diferentes tendências.
"Bishop cria uma tensão interessante entre a modernidade e tradição emobra. Usa formas modernas, como versos livres, e formas clássicas, como sonetos. E, mesmo quando usa formas clássicas, emprega uma linguagem radicalmente coloquial. Sua temática tem elementos líricos e autobiográficos, mas ela não cai no extravasamento emocionaloutros autores. Bishop colocavida no que escreve, masforma discreta", diz Britto.
'Foi uma revolução rápida e bonita'
Se Elizabeth Bishop continha-seseus versos, o mesmo não pode ser dito do que escreviaprosa ou nas cartas trocadas com amigos, publicadaslivros apósmorte. Estes textos trouxeram à tona diversassuas opiniões mais controversas, inclusive sobre um dos momentos mais sensíveis da história brasileira.
"Foi uma revolução rápida e bonita, debaixochuva — tudo terminadomenos48 horas", escreveu4abril1964, três dias depois do golpe que daria início a maisduas décadasregime militar no país,uma carta para o poeta Robert Lowell (1917-1977), seu amigo e um dos seus interlocutores mais frequentes.

Crédito, Vassar College Library Archives
Alguns dias depois, ela expressa sentimentos ambivalentes sobre o que estava acontecendo. "Ando horrivelmente deprimida com o que está acontecendo por aqui, e meu único pensamento é ir embora por um tempo", escreveu.
Ao mesmo tempo, afirma que "a suspensão dos direitos, a cassaçãoboa parte do Congresso etc., isso tinhaser feito por mais sinistro que pareça. De outro modo teria sido uma mera 'deposição', e não uma 'revolução'".
Um mês após o golpe, disseoutra carta: "Nunca na minha vida, antesvir para cá, sonhei por um minuto que algum dia eu gostariaver um exército tomar o poder".
Bishop considerava Carlos Lacerda "muito corajoso e inteligente" e "um dos melhores amigos" que tinha no Brasil. Lacerda apoiou o golpe a princípio, mas, depois, foi para a oposição ao regime militar, para o desgostoBishop.
"Carlos traiu todo mundoforma horrível — depoistodos os anosluta contra a gangue do velho Vargas e a corrupção,repente, por razões políticas, ele se passou para o lado deles (e dos comunistas) outra vez", escreveu ela a Lowell.
O escritor Marcelo Moutinho lamentou a escolhaBishop por causa desse posicionamento político. "Todas as pessoas têm o direitoerrar, efazer suas próprias revisões. Não me filio a patrulhas eternas. Me pergunto, porém, se nesse momentoloas efusivas à ditadura, e mesmo à tortura, não seria o casoprestar tributo a quem tenha uma trajetóriacompromisso com a democracia sem maiores hesitações", escreveu emconta no Twitter.
A escritora portuguesa Alexandra Lucas Coelho afirmou que homenagear "uma poeta estrangeira que morou no Brasil olhando-o do alto do seu horror às massas, que apoiou com alívio o golpe militar1964, que rejubilou com o desfile 'anti-comunista' pós-golpe" é, "no momento que o Brasil vive, a mensagem oposta do que seria preciso".
Munhoz, da Flip, diz que já esperava por estas críticas e que a direção do evento pretendia com esta escolha estimular um debate. "Em um momentopolarização eque as pessoas estão se isolandobolhas, só a arte pode criar um ambienteresistência. É bom lembrar que essa realidade não se limita ao Brasil. Acreditamos que a arte literáriaElizabeth Bishop, fortemente conectada com o Brasil e com o mundo, será capazfortalecer este diálogo internacionalmente", afirma.
Momento político polarizado
Cassiano Elek Machado, diretor editoral da Planeta no Brasil e ex-curador da Flip, considera as críticas "compreensíveis" diante do momento politico polarizado pelo qual o país passa, "em que as sensibilidades estão aguçadas e qualquer coisa já acende uma faísca e vira um incêndio".
"É uma escolha que tem diversos pontos que podem ser contestados, mas também lança uma luz sobre uma poeta que produziu no Brasil uma literatura da maior qualidade, teve uma relação intensa com o país e foi uma importante agente cultural da literatura brasileira no exterior", diz Machado.

Crédito, Arquivo Nacional
Machado foi curador da Flip2007, quando o evento homenageou Nelson Rodrigues, que também apoiou o golpe militar. "Não teve essa polêmica, mas era um momentoque as coisas não estavam nem perto do que estão hoje. Acredito que os motivos que levaram a Flip a escolhê-la ficarão mais claros ao vermos como essa homenagem vai estar inserida dentro do festival."
Britto, da PUC-Rio, afirma que a decisão "não deixaser uma infeliz coincidência e um pouco incômodaum momentoque temos um governo claramente autoritário", mas diz ser preciso considerar o contextoque se se deu o apoioBishop ao golpe64.
NascidaWorcester, nos Estados Unidos, Bishop foi criada por parentes, após seu pai morrer quando ela ainda era bebê emãe ser internada por problemas psiquiátricos. Chegou ao Brasil durante o início do segundo governoGetúlio Vargas, a quem chamava"ditador" mesmo apósele ter sido democraticamente eleito.
Seu plano era viajar pela América do Sul, mas, no Rio, conheceu a arquiteta LotaMacedo Soares, que idealizou a construção do Aterro do Flamengo. Elas se apaixonaram, e Lota foiprincipal razão para permanecer no Brasil. O casal manteve um relacionamento por 16 anos.
"Bishop era muito pouco ligada à política, eadesão ao golpe foi simplesmente uma consequênciaela ser casada com a Lota, que era muito próximaLacerda, que foi um dos líderes civis do golpe. Ela repete tudo que ouve Lota dizer", afirma Britto, que defende ser necessário separar a vida e a obraBishop.
"(O poeta americano) Ezra Pound aderiu ao fascismo, mas ninguém deixadar o mérito que ele merece porque agiuforma desprezível e indefensável. O que não é o casoBishop, porque ela não fez propaganda do governo militar nem foi uma porta-voz do regime. Foi uma adesão que se deu apenas nas suas cartas", diz Britto.
Paulo Werneck, fundador da revistaensaios literários Quatro Cinco Um e ex-curador da Flip, afirma que a biografiagrandes nomes da história muitas vezes não escapa ilesauma análise mais detalhada.
"É difícil engolir aquele tipoopinião sobre o golpe, que a história provou ser equivocada, mas é comum encontrarmos na vidanossos heróis momentos ou opiniões feias. A obraBishop é central no século 20", afirma Werneck.

Crédito, Arquivo Nacional
Porvez, o poeta Ricardo Domeneck disse que muitas das reações contra Bishop têm sido baseadas na emoção e não na razão. "Ao descobrir certas declarações da poeta, (as pessoas) sentem-se traídas. Não diminuo esse sentimento. É legítimo, mesmo que imaturo,minha opinião", escreveu emconta no Twitter.
"O que desejo, eu próprio, e o caminho no qual gostaria que meus colegas me guiassem, é o da razoabilidade, do sensoproporção,uma noção maduracausalidade entre política e literatura, sem simplificações, sabendo identificar os verdadeiros adversários."
'O Brasil é mesmo um horror'
As opiniões polêmicasBishop não se restringiram ao cenário político. A própria curadora do evento, Fernanda Diamant, disse após o anúncio que uma das intenções desta homenagem é mostrar a relação "intensa" e "ambígua"Bishop com o Brasil, na qual a poeta foi "muito crítica, mas também muito apaixonada" pelo país.
O poeta e diplomata Felipe Fortuna destacou emconta no Facebook diversos trechostextos da escritora com visões negativas sobre o Brasil. Entre eles, passagens do livro Brazil, publicado pela Life World Library,que a escritora afirmou: "Muitos talentos brasileiros genuínos parecem ir para a cama muito cedo — ou para as redes". Em outra passagem, Bishop disse: "De fato, a bananeira é um ótimo símbolo para o país e para o que aconteceu e continua a acontecer nele".
É bem verdade que,suas correspondências, Bishop se mostroucertos momentos encantada com alguns aspectos do país, como quando disse adorar a "miscelânea internacional" formada pela convivência entre brasileiros e imigrantesdiferentes países.
Disse que o hábitotomar "cafezinhos a toda hora" a estava fazendo emagrecer e contou estar "se engalfinhando" com o português, que dedicou-se a aprender. A princípio, contouuma carta que ela e Lota tinham "horror ao Carnaval", mas a aversão parece ter sido superada, porque,correspondências posteriores, disse sempre tentavam ir à "noite das EscolasSamba dos negros".

Crédito, Vassar College Library Archives
Em dado ponto, observou que "todos os meninos se chamam 'José' alguma coisa e todas as meninas se chamam 'Maria' alguma coisa". "Esses nomes são sempre abreviadosapelidos absurdos que pegam para a vida toda", escreveu. "Aqui eu sou 'dona Elizabétchi' — sempre os prenomes. Você seria 'seu Roberto'. Não, acho que como tem um diploma seria o 'doutor Roberto'."
Mas claramente incomodava-se com a pobreza, a injustiça e o atraso. "O Brasil é mesmo um horror", disse elauma das cartas.
Em outra correspondência, afirmou: "Como você sabe, é um país estranho, uma mistura dos séculos 18 e 19 com rápida industrialização, terrível pobreza, luxo, preto e branco, o avançado e o primitivo — ainda estou surpresame ver vivendo aqui, mas vou ficando". Mas, na mesma carta, disse que "aqui é meu verdadeiro lar agora".
O Rio era "o cenário mais lindo do mundo", emopinião, mas elas não se furtoutratar dos seus problemas. "O Rio está mais louco que nunca", escreveu para Lowell. "Falta águapartes da cidade e o gás anda escasso;cada edifício só um elevador funciona e há filas intermináveis, quarteirões inteiros para pegar os ônibus miúdos, cromados e brilhantes ou os bondes velhos e abertos."
Elogios e críticas à cultura brasileira
Sobre a poesia brasileira, afirmou que o que havia lido até dado momento era "tudo gracioso, delicado". Apreciava os poetas João CabralMelo Neto e Carlos DrummondAndrade. Também gostavaEuclides da Cunha e dizia que o autorOs Sertões só ficava atrásMachadoAssis, "a única glória das letras que existe por aqui".
Ainda fez traduções para o inglêspoetas brasileiros como Drummond, Cabral, Cecília Meireles e Joaquim Cardozo, depois reunidasAn Anthology of Twentieth-Century Brazilian Poetry (Uma Antologia da Poesia Brasileira do Século 20,tradução livre).
Mas Bishop avaliou duramente alguns dos maiores símbolos nacionais brasileiros: "Se você nunca vê um Picasso autêntico, finge que Portinari é bom — ou se você nunca na vida ouviu boa música, finge que bossa nova é bom e que Villa-Lobos é o maior etc".
Em outros momentos, fez comentários mordazes. "Há um grande renascimento do catolicismo pelo que vejo, e famílias grandes são o estilo predominante: dez ou doze", escreveu, paraseguida emendar: "Bem, eu não me incomodaria com as famílias grandes se ficassem restritas à classe alta (e como tudo fica simples quando não existe classe média)".
Munhoz, da Flip, afirma que o evento será "uma ótima oportunidade para a gente discordaralgumas posições da autora e ao mesmo tempo aprofundar o conhecimentosua obra literária".
O diretor Bruno Barreto afirma que aqueles que criticam a escritora por estes comentários sofremum eterno complexovira-lata. "A autoestima dos brasileiros é tão baixa que não conseguem ouvir críticas", diz Barreto, que retratou o romance entre Bishop e Lota no seu filme Flores Raras (2013).
O casal viveu junto até quase a morte da arquiteta,1967,Nova York, por overdosetranquilizantes. Barreto diz que elas eram "diametralmente opostas". "Bishop era frágil, enquanto Lota era um exemplofortaleza. Juntas, elas se complementavam e tiveram os melhores anossuas vidas", afirma Barreto.
Bishop deu aulas na UniversidadeWashington e Harvard e, após a morteLota, teve um longo relacionamento com a americana Alice Methfessel, 32 anos mais nova do que ela e com quem viveu nos Estados Unidos atémorte,1979, por causaum aneurisma cerebral decorrente dos anosalcoolismo.
O que mais chamou a atençãoBarreto na vidaBishop empesquisa para o longa foicapacidadesuperar perdas, temaumseus poemas mais conhecidos, A arteperder.
"Desde pequena, ela só sofreu perdas. Ela era errante, disfuncional e alcoólatra, mas vai ficando mais forte entre um porre e outro. Ainda que não se colocasse como uma vítimanenhuma forma, acho que a Bishop foi salva pela poesia. Talvez tivesse morrido mais cedo se não escrevesse."

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