Paulista se acha melhor que resto do Brasil por herança europeia e passado bandeirante, diz sociólogo:ronaldinho bet
"A ideiaronaldinho betque, porque São Paulo havia sido abandonado pelo Estado português [durante a colonização] os bandeirantes [que "desbravaram" o Estado] vão ser percebidos como pessoas que vão ter iniciativa, empreendedorismo, que vão montar o mundo pelas próprias mãos — exatamente no sentidoronaldinho betque eles percebem que o pioneiro protestante havia feito nos EUA", afirma o sociólogo,ronaldinho betreferência aos primeiros colonos que ocuparam o território norte-americano.
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Ao mesmo tempo, diz ele, a chegada dos imigrantes europeus foi usada pela elite para reforçar a ideiaronaldinho betque o paulista é mais moral por ter uma herança europeia.
"Foi uma tática da elite para conquistar a classe média branca, porque para a elite é importante ter uma 'troparonaldinho betchoque' que ela possa usar como arremedoronaldinho betparticipação popular", diz Souza, que também é formadoronaldinho betdireito pela UnB (Universidaderonaldinho betBrasília) eronaldinho betfilosofia e psicanálise na New School for Social Research,ronaldinho betNova York, nos EUA.
"Com essas duas coisas, quem é o condenável, quem é o criminoso se não o povo? O povo que não é branco europeu, nem elite — os brasileiros que são pobres e mestiços."
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
ronaldinho bet BBC News Brasil - A formação da identidade paulista é diferente da formação da identidade brasileira?
ronaldinho bet Jessé Souza - Muitas vezes ideias são disseminadas atravésronaldinho betum processoronaldinho betdominação elitista, mas esse processo é esquecido depois. Não é que as pessoas neguem, mas simplesmente tem um silêncio. Se você já conseguir convencer as pessoas daquela ideia, não precisa mais ficar batendo naquela tecla. Tem uma astúcia do poder nisso.
São Paulo é um estado extremamente importante. Eu mororonaldinho betSão Paulo há 6 anos e isso foi extremamente importante, porque fiz muitas entrevistas no interior e também na região sul. É um outro Brasil.
Primeiramente, é um Brasil branco, a maioria da população é branca — isso não existe no resto do Brasil. E tem essa enorme influência do estrangeiro, do imigrante europeu. Mas, para entender a diferença, é preciso compreender as ideias que dominavam a formação da identidade nacional e o que estava acontecendoronaldinho bet1930.
ronaldinho bet BBC News Brasil - Quais eram essas ideias sobre a identidade nacional?
ronaldinho bet Souza - O pensamentoronaldinho betSergio Buarqueronaldinho betHolanda é central nisso, ele vai criar os dois conceitos mais importantes da política brasileira até hoje — ideias que se espalharam pela sociedade, não ficaram só na cabeça dos intelectuais.
Primeiro é a noçãoronaldinho bethomem cordial como uma coisa só negativa [é a ideiaronaldinho betque o brasileiro age pela emoção e não pela razão, que ele tem um desejoronaldinho betestabelecer intimidade e que todas suas interações sociais se dão com base nos afetos, nos valores domésticos, confundindo o público com o privado, o que favoreceria a corrupção].
Depois é a noçãoronaldinho betEstado patrimonial [de que os assuntos públicos,ronaldinho betEstado, no Brasil, são tratadosronaldinho betmodo pessoal], como se o Estado fosse a origemronaldinho bettoda corrupção.
Ele vai dizer que o povo brasileiro, como o homem cordial, é corrupto, é ladrão, não respeita as leis — é o domínio dos afetos. Isso vai montar a ideiaronaldinho betum ataque moral, porque se você é corrupto, inconfiável, se você retira a honestidaderonaldinho betalguém e diz que essa pessoa é corrupta, você a desumaniza.
Segundo Sérgio Buarque, isso teria a ver com a herança portuguesaronaldinho betcorrupção da Idade Média. Mas isso é uma acusação ridícula, para dizer o mínimo, porque na Idade Média não podia haver corrupção no sentido moderno. A corrupção no sentido moderno é do particular que rouba o bem público, mas a noçãoronaldinho betbem público só passa a ser pensável a partirronaldinho bet1789 [data da Revolução Francesa].
Para isso você precisa ter noçãoronaldinho betsoberania popular, que podem existir bens que não pertencem a ninguém individualmente, mas ao povo como um todo. E o mais estranho é que os intelectuais brasileiros vão olhar e falar: "Puxa! Veja como ele era crítico! Veja a verve crítica, a objetividade científicaronaldinho betperceber que o povo brasileiro é realmente a lataronaldinho betlixo da história."
No fundo, com essas ideias, você culparonaldinho betnovo — e claro que não estava na cabeça do Sergio Buarque desse modo — o povo pelo seu próprio atraso sem tocar na palavra raça. Você transforma o racismo que até então era explícitoronaldinho betuma questão cultural, moral — um racismo cultural.
ronaldinho bet BBC News Brasil - O racismo deixaronaldinho betser explícito?
ronaldinho bet Souza - Não é que acabou o racismo, mas o racismo racial anterior havia sido interditado publicamente, você não pode voltar à ideologia racistaronaldinho bet[Arthur de] Gobineau [teórico francês do racismo que acreditava que os brancos eram superiores e que o Brasil era povoado por raças inferiores e mestiços degenerados].
As mudanças dos anos 1930 no Brasil conseguiram barrar formas mais violentas e explícitasronaldinho betracismo. É muito importante você fazer com que as pessoas se controlem e tenham pelo menos vergonharonaldinho betserem racistas. Os EUA só foram ter isso nos anos 1960, com o movimento pelos direitos civis. Mas não acaba o racismo: você torna o racismo explícito não palatável, mas é claro que os afetos racistas estão lá.
ronaldinho bet BBC News Brasil - E que mudanças estavam acontecendo nos anos 1930?
ronaldinho bet Souza - Em 1930 [quando Getúlio Vargas se torna presidente] você tem o primeiro estadista brasileiro, no sentidoronaldinho betque ele tinha um projeto para a sociedade como um todo. Getúlio quer mudar a sociedade: modernizar e industrializar. Mas ele também quer inclusão popular.
Foi uma revoluçãoronaldinho betgrandes proporções. Primeiro você destrona uma elite que estava no poder há 400 anos [a elite rural da República Velha] depois você vai montar a identidade nacional que não existia antesronaldinho betGetúlio eronaldinho betGilberto Freyre.
Antes deles, existia o racismo cientifico explícito,ronaldinho betGobineau, que todos os intelectuais brasileiros dessa época aderiram — mesmo aqueles que defendiam os negros. Joaquim Nabuco, por exemplo, que eu até admiro, queria um melhor tratamento, mas acreditava na inferioridade.
Mas no início do século 20, Gilberto Freyre cria a ideia do "bom mestiço". Que é isso tudo que o brasileiro lembra quando pensa positivamente na brasilidade. Freyre vai dizer que essa característica afetiva do povo pode ser positiva, que você pode receber bem o diferente, dizer que o brasileiro tem calor humano, hospitalidade, sexualidade exuberante.
E Getúlio usa esse conceito para montar uma espécieronaldinho betrevolução cultural, porque você não vai construir uma identidade nacional com um povo que você considera a lataronaldinho betlixo da história.
Nessa época você vai ter a propaganda do Estado dizendo: olha a nossa fonte é africana, não há problema nenhum com isso, aliás, é ótimo, porque a gente tem coisas que ninguém tem, o samba, futebol etc. Então pela primeira vez o negro e o mestiço são celebrados no Brasil.
Freyre é um cara muito mal compreendido. Claro que era um cara conservador naronaldinho betvida pessoal, mas intelectualmente era muito mais progressista do que outros pensadores da época. Mas Freyre falha no pontoronaldinho betque ele não tem consciênciaronaldinho betque essa dominação cultural e esse racismo cultural estão baseados no fatoronaldinho betque tanto nos EUA quanto na Europa, o racismo vem do fatoronaldinho betos brancos se verem como representantes do espírito.
O que é isso? São atributos do espírito a inteligência, o bom gosto estético, a moralidade e a honestidade. Tudo o que a gente acha virtuoso é ligado ao espírito, e o que é ruim vai estar ligado ao corpo: o sexo, a agressividade. Se você quer oprimir alguém, humilhar alguém, você tem que relacionar essa pessoa ao corpo.
É isso que fazem com as mulheres, é isso que fazem com os negros, é isso que fazem com as culturas oprimidas na América Latina, África e Ásia. Freyre não criticou isso, ele não percebia, mas ele vai tentar, dentro disso, pegar as "virtudes ambíguas do corpo" e destacar o positivo.
ronaldinho bet BBC News Brasil - E onde entra a questão da identidade do paulista neste cenário?
ronaldinho bet Souza - A eliteronaldinho betSão Paulo já é a mais poderosa nessa época e ela vai ser contra Getúlio. Ela tenta, com a guerra — o levanteronaldinho bet9ronaldinho betjulhoronaldinho bet1932 — como todo mundo sabe, recuperar o poder. Mas ela é derrotada militarmente. O que essa elite vê? "Olha estamos perdidos se fomos para o confronto. O que a gente pode fazer?"
Você pode usar o domínio das ideias. Porque esses caras tinham não só as fazendasronaldinho betcafé, as nascentes indústrias, mas editoras, jornais, rádios. Essa elite cria a Universidaderonaldinho betS. Paulo — e é claro que não estou acusando a USP, tem muita gente boa lá, mas obviamente foi uma etapa fundamental nesse processoronaldinho betrecriar uma hegemonia cultural elitista para o Brasil.
Então se cria a ideiaronaldinho betque o paulista é diferente — é algo que foi pensado, planejado é aí que entra o excepcionalismo paulista. É a épocaronaldinho betque surge a ideiaronaldinho bethomem cordialronaldinho betSergio Buarque, mas esse homem cordial não é o brasileiroronaldinho betgeral — o excepcionalismo paulista prega que os paulistas, e os brancos do Sul, são diferentes.
ronaldinho bet BBC News Brasil - Eles seriam diferentes como? Quais são os argumentos dessa ideia?
ronaldinho bet Souza - A eliteronaldinho betSão Paulo já estava se vendo nos anos 1910, 1920 como uma espécieronaldinho betequivalente funcional do pioneiro protestante americano. A ideiaronaldinho betque, porque São Paulo havia sido anteriormente abandonado pelo Estado Português — esse elemento supostamente corruptor — os bandeirantes [que "desbravaram" o estado] vão ser percebidos como pessoas que vão ter iniciativa, empreendedorismo, que vão montar o mundo pelas próprias mãos — exatamente no sentidoronaldinho betque eles percebem que o pioneiro protestante havia feito nos EUA.
Então os bandeirantes, caçadoresronaldinho betíndios, vão ser travestidosronaldinho betprotestantes ascéticos. São Paulo deve desempenhar no Brasil, segundo essa leitura, o mesmo papel que que Massachusetts nos EUA — Estado que vai criar uma nova nação, moderna, racional etc etc.
E isso é importante, porque se a elite herdeira dos bandeirantes é como a americana, ela não é portuguesa como o povo. Então se o povo é corrupto, a elite paulistana não — ela passa a ser melhor, passa a ser o contrário.
E concomitante a isso, há a chegada dos imigrantes europeus — a grande leva éronaldinho bet1890 a 1930 — 5 milhõesronaldinho beteuropeus brancos e vários outros vindo para o Brasil. E esses 5 milhõesronaldinho betbrancos que estão chegando nessa hora se percebem como europeus, obviamente, pela origem recente — mas até hoje os descendentes no Sul eronaldinho betSão Paulo têm essa visão, têm o maior orgulho do nome.
A classe média branca que se forma — italianaronaldinho betSão Paulo e alemã no Sul — vai se perceber como diferente do povo, pois ela é europeia.
Então isso se junta ao fatoronaldinho betque a elite paulista já se via como diferente porque seria como a americana, empreendedora, como o protestante ascético. Então você tem o excepcionalismo paulista, a ideiaronaldinho betque o paulista é superior por causaronaldinho betuma herança cultural europeia e uma moralidade americana. Então com essas duas coisas, quem é o condenável, quem é o criminoso se não o povo? O povo que não é branco europeu nem elite — os 80%ronaldinho betbrasileiros que são pobres e mestiços.
ronaldinho bet BBC News Brasil - Masronaldinho betonde vêm essas ideiasronaldinho betvalor e virtude do pioneiro americano protestante?
ronaldinho bet Souza - O que está por trás disso é a tese clássicaronaldinho betMax Weber sobre o protestantismo, que cria uma sociedade nova adaptada ao capitalismo, com disciplina, controle, o que é verdade. Mas os americanos usaram essa ideia para justificar o imperialismo, dizendo que o protestantismo ascético nos EUA torna o país a pátria da produtividade econômica, da democracia, e da honestidade, o que não é verdade.
ronaldinho bet BBC News Brasil - Mas por que a ideiaronaldinho betidentidade paulista seria diferenteronaldinho betum simples orgulho regional, como por exemplo, um orgulhoronaldinho betser pernambucano ou mineiro?
ronaldinho bet Souza - Não é a mesma coisa. O excepcionalismo paulista foi conscientemente construído. O orgulho do pernambucano, se você se perguntar, é o frevo, a comida, gente importante que nasceu lá. Você não tem, como no excepcionalismo paulista, uma interpretação, uma exegese [interpretação detalhada]ronaldinho betcomo funciona o mundo. Só São Paulo construiu isso. Justificando a ideia no passado longínquo, no começo da colonização, você vai dar aresronaldinho betciência.
ronaldinho bet BBC News Brasil - Esse tiporonaldinho betpensamento perdura até hoje?
ronaldinho bet Souza - Um dado importante é que os seres humanos não percebem como eles são formados. Uma criançaronaldinho bet0 a 4 anos, ela vai "engolir" o pai e a mãe, e não é só o jeitoronaldinho betandar, falar, masronaldinho betperceber e avaliar o mundo — isso entraronaldinho betmodo pré-reflexivo. Isso é percebido pelas criançasronaldinho betexemplos, emocionalmente. Se isso não foi criticado, tende a continuar indefinidamente.
E hoje essas ideias continuam, são ideias importantes do Brasil. Elas estão por trás do Bolsonaro — porque Bolsonaro tem o apoio da elite,ronaldinho betmuitos brancos racistas, mas tambémronaldinho betmuita gente que é remediadamente pobre. O eleitor do Bolsonaro não é aquele que ganha menosronaldinho betdois salários mínimos. É aquele que ganha entre dois e cinco salários. Ele vai ser muito tipicamente o branco pobreronaldinho betSP e do Sul — onde Bolsonaro tem, ou tinha, maioria.
Por outro lado, Bolsonaro também tem também o apoio do pardo evangélico — que também se acha superior aos outros negros, mas pela conversão religiosa.
É sempre uma questãoronaldinho betdistinção moral. Mas entre os pobres brancos do Sul, o cara pensa "como eu sou branco e ganho R$ 3 mil sendo que tem o cara que tem a mesma cor que eu e ganha R$ 20 mil?".
Mas ele não consegue criticar, enxergar que ele também foi injustiçado e se unir com os outros injustiçados. Eles têm raiva, tem ressentimento, não sabem por que — e aí são muito facilmente manipuláveis porque se sentem inferiores. Se eu sou superior e não sou rico, a culpa não é minha.
Você é levado a odiar os negros, os mais pobres para explicarronaldinho betprópria situação — não sobra dinheiro para mim porque o pessoal está usando para dar essa mamata para esse pessoal.
ronaldinho bet BBC News Brasil - Está ligado a uma ideiaronaldinho betmeritocracia?
ronaldinho bet Souza - Isso está ligado à meritocracia, antesronaldinho bettudo, na classe média branca — porque a elite tem o dinheiro e sabe que está comprando e mandandoronaldinho bettudo. Mas quando você diz que a classe média branca é a classe da moralidade, num paísronaldinho betgente corrupta, a classe média se torna a classe da meritocracia por excelência. E que é a meritocracia?
Você esquece todos os privilégios sociais que você está recebendo, desde o berço — e aí não é só dinheiro, isso é extremamente importante — você ter pais disciplinados que amorosamente tentam incutir disciplina nos filhos, o hábitoronaldinho betleitura, capacidaderonaldinho betconcentração, capacidaderonaldinho betpensamento abstrato... Ninguém nasce com isso, isso é um projetoronaldinho betaprendizado — e quase sempre familiar, principalmente nos primeiros anosronaldinho betvida.
Então isso é uma extraordinária herança que o cara da classe média branca receberonaldinho betpresente — e como essa transmissão é feitaronaldinho bettenra idade, ou seja, numa idaderonaldinho betque a gente nem sequer se lembra do que aconteceu, aparece como milagre da capacidade individual, do esforço.
É claro que esse cara vai ter ainda uma boa escola, uma escola melhor, tempo livre para que ele possa só estudar — o que não acontece com os pobres. Os pobres começam a trabalhar com 11, 12 anos.
Então é uma maldade e uma imbecilidade falarronaldinho betmeritocraciaronaldinho betum país como o nosso. Mas obviamente, a meritocracia vai ser uma forma adicional ao excepcionalismo paulista, ao racismo cultural, para ser uma formaronaldinho betlegitimação do capitalismo.
Mas essa ideia da meritocracia existeronaldinho bettodos os lugares. O Brasil vai construir, com excepcionalismo paulista, no sul, além da meritocracia, essa questão do racismo cultural, essa linha da honestidade, da moralidade.
ronaldinho bet BBC News Brasil - Como essa ideologia do excepcionalismo afeta a população não branca desses Estados?
ronaldinho bet Souza - Esses brasileiros mestiços e negrosronaldinho betSão Paulo e no Sul — que são maioria no resto do Brasil — vão ser muito afetados por essa leitura. Eu chamo issoronaldinho betracismo cultural.
É uma substituição do racismo racial, depois que o racismo racial foi interditado na esfera pública. Você tinha que colocar uma outra ideia para fazer a mesma coisa que o racismo racial fazia, contra as mesmas pessoas.
O racismo destrói a autoestima, destrói a autoconfiança. Se dizem: você é feio, você é preguiçoso, é corrupto, ladrão. O que diabos você vai fazer daronaldinho betvida?
Você não tem legitimidade, não é respeitado, não é reconhecido. Então esse tiporonaldinho betleitura da realidade é um veneno. Ele vai retirar das pessoas vontaderonaldinho betvida, capacidaderonaldinho betsobrevivência. Você vai enfraquecer e criminalizar.
Entrevista publicada originalmenteronaldinho betjulhoronaldinho bet2022